9 de dezembro de 2008

Revelação

Fugindo às celas da mente,
corro pelas ruas, vestido de crueldade,
cuspindo, contra o vento, escarros de amargura.
E para todos os seres sou ao frio aço semelhante,
mas para meu amor sou apenas ternura.

Cansado de percorrer solitário
os desertos sombrios da Existência,
me deparo com tua paradoxal presença:
doce, comovente e perturbadora, que
desequilibra, derruba e faz levitar.

Entre lágrimas, sorrisos e dúvidas
um amor desponta tímido e, como o sol,
dissipa todas as trevas.
Confere sentido, calor, alegria e propósito
ao árido caminho de um construto.

Meu destino é o que me leva a ti,
que tens o semblante refletindo meus sonhos e que
rouba a minha alma num beijo.

21 de julho de 2008

Macacos amestrados

Sou um macaco. Um macaco especial, como todos os macacos. Sou um macaco amestrado. Desde a mais tenra idade fui ensinado a fazer truques. Truques muito legais, tenho que admitir, como: falar, ouvir, ver, assistir TV, ler, ir à escola, ir à igreja, idolatrar outros macacos, viver em sociedade, trabalhar, comprar, entre outros truques igualmente impressionantes. Fui treinado para aceitar que tudo isto é natural, inerente à minha condição de macaco. Fui treinado, enfim, para sequer desconfiar que fui treinado.

A televisão, por exemplo, é uma das melhores coisas já criadas para macacos. Não sei como sobrevivi sem ela antes dos meus dois anos de vida. E as compras então! Fui treinado para ser feliz somente quando passo os pequenos pedaços de papel colorido a outro macaco. Todas as agruras de macaco são compensadas nessa hora. Não importa no que eu gaste o dinheiro: sapatos, roupas, carros, cinema, concertos, livros ou sexo. O fato é que só sou feliz consumindo.

Como pode ver, não é muito difícil fazer um macaco amestrado feliz. Basta dar a ele algo em que acreditar, uma ordem para que ele execute, e um dinheiro para que ele gaste. Ser um macaco amestrado não é pedir muito.

Tem um lado bom e um ruim em ser um macaco amestrado. O lado bom é que eu compartilho o meu treinamento com todos os outros macacos. Somos todos eficientes macaquinhos cumpridores de ordens. O lado ruim é que nenhum macaco amestrado acredita que é amestrado. Todos os macacos crêem firmemente que são originais e livres. Talvez o lado ruim seja o lado bom e vice-versa porém...

E eu? Eu também? É, eu também, claro. Eu sei que sou amestrado, mas ao contrário da maioria, eu admito que sou. Um certo macaquinho francês, Jean-Paul Sartre, escreveu uma vez: "não importa o que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós". Tem um grande otimismo, essa frase, apesar de tudo. Mas todo o treinamento que eu der a mim mesmo vai estar baseado no treinamento que eu tive anteriormente, o que vem a dar quase na mesma.

Mas então será mesmo que existe um grande sistema de amestragem de macacos? Um Grande Irmão Macaco? George Orwell era um macaco sábio, ou assim se diz. Na minha humilde e amestrada opinião de macaco, não poderia existir um sistema assim. Por dois motivos:

1) Não acredito em teorias da conspiração. Isso é coisa de socialista ingênuo e de capitalista paranóico. E não gosto de nenhuma dessas espécies de debilóides.

2) Um sistema do tipo teria de ser planejado por macacos. E sugerir isso, seria superestimar as capacidades deles.

Os macacos simplesmente adestram a si mesmos. Se nos damos conta disso ou não, não faz a menor diferença. Nós macacos sentimo-nos melhor quando amestrados. Mas vai saber, sou só um macaco amestrado, com comportamento e pensamentos amestrados.

O fato é que sou o bom moço foucaltiano. O bom macaco. O macaco amestrado. E sei dançar. Todos os macacos sabem dançar. Macacos gostam de dançar. Dancem macacos, dancem.

Dancem Macacos, Dancem.

Cadê?

Busca. Caminho. Um destino que aguarda os meus passos. Mas cadê as oportunidades que se oferecem aos jovens? Cadê o amor de que falam os poetas que não li? Cadê a igualdade que consta nas leis? Cadê o esconderijo onde se oculta o futuro?

Vida calcada nas esperanças postas no devir e no definir. Caprichos de nebulosos de um nefelibata induzido. Não pude evitar ser enganado pelo mundo. E cair das nuvens não é fácil nem agradável. Pior é passar do chão e mesmo de lá ainda ter a coragem de sonhar.

O que posso fazer além de aceitar a rota de um povo que renego dum tempo que não quero?

O que fazer além de continuar a busca? Prosseguir previamente o mesmo percurso traçado para mim, mas não por mim. Cadê a originalidade? Está nos pequenos desvios rebeldes, nas pequenas paradas reflexivas, mas principalmente na consciência lúcida e na desesperança.

Cadê o sentido? Cadê a vida? Cadê eu? Cadê tudo? E cadê nada?

Os Ombros Suportam o Mundo




Por vezes, como Atlas, me sinto suportar o mundo silencioso que não me concede nada a não ser ele mesmo e a oportunidade que tenho de existir e suportá-lo.

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade.
Antologia Poética. São Paulo: Record, 1993.

16 de julho de 2008

Quero ser mendigo


Todas as criancinhas e jovens da nação querem ser médicos, advogados, engenheiros, empresários ou celebridades. Mas nenhum deles quer ser mendigo, indigente ou sem-teto. Opa, eu quero! Mamãe, quero ser mendigo.

Quero ser o salmão que nada contra a corrente e que sobe o rio. Na contra-corrente do que todos querem, sou do contra, sou à margem.

O mendigo é o excluído. Excluído do lucro, da compra, da venda, da produção, da circulação do capital enfim. O mendigo é o indivíduo colocado a parte do funcionamento da sociedade. A peça desnecessária nas engrenagens da grande máquina da humanidade é o mendigo.

Mas não é isso. O mendigo faz parte da sociedade, é o aborto dela, o rejeitado, o lixo social. O mendigo está ali para servir como exemplo de fracasso e como comparativo de riqueza e poder. Afinal, o que pode acontecer de pior a alguém do que ser um mendigo? Mendigar é o fim social, a não-produção. É o chão do qual ninguém pode passar. É o que há de inferior e comparar-se a ele é elevar a si mesmo.

E é por isso que o mendigo é livre e é um rebelde. A sua liberdade é alcançada pelo desprezo e pela exclusão. Ele é o homem sem futuro. Seu único destino é a miséria. Ele renega e está livre dos objetivos, diretrizes e moralidades burguesas. Não é nem pró nem contra o capitalismo. Não é alinhado a nenhuma ideologia que não a sua. O mendigo não é nada, não deseja nada, não pode querer ser nada. E por isso tem a liberdade mais profunda que um homem finito poderia almejar. Porque ser livre é cair no vazio.

E que é comer da caridade? Isso não agrilhoa o mendigo. Apenas o vinga.

Quero ser mendigo. Quero a liberdade de não ter mais nada a perder.

3 de julho de 2008

O Poeta Pobre


Óleo sobre lona entitulado "O Poeta Pobre" (Der arme Poet), do pintor e poeta romântico alemão Carl Spitzweg (1808-1885).

Por algum motivo essa pintura me marcou profundamente. É linda realmente, mas não foi só pela beleza estética que me chamou a atenção. A pintura mostra a decadência de um artista, ou a decadência, a privação, a frugalidade, as dificuldades financeiras que acompanham o artista. Um artista sem oportunidades é um artista fracassado, um poeta pobre.

Bem, não sou poeta. Não tenho talento pra isso. Mas procuro uma carreira semelhante, no ramo acadêmico. E ao ver essa pintura veio à tona todos os meus medos de não ser economicamente bem sucedido na profissão que escolhi. Serei um dia como o poeta pobre de Spitzweg? Se serei, que seja! O serei com satisfação. Satisfação de pelo menos ser um poeta. E há até certa magia em ser mendigo e poeta...

Sobre Spitzweg: pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Spitzweg

Galeria com 185 obras de Spitzweg: www.carl-spitzweg.de/galerie.htm

23 de junho de 2008

Astolfo contra o dragão

Esse é um conto que, inicialmente, eu escrevi pra lista de discussão sobre Tormenta, cenário de RPG brasileiro. Aqui eu retirei todas as citações e referências feitas ao cenário. Assim, mesmo alguém que não saiba nada sobre Tormenta ou RPG entenderá o conto que segue. Entretanto, o universo geral na qual se passa o conto continua sendo a fantasia medieval, com animais fantásticos, nobres guerreiros, camponeses, magia e tecnologia rudimentar.

A história gira em torno de um talvez herói que tem a missão de derrotar um maligno dragão. O enredo tem a pretensão de ser cômico, então os exageros, as ironias, o ridículo e o non-sense não devem espantar o leitor que se deixará levar por essas passagens se quiser melhor aproveitar a história.

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Astolfo contra o dragão
Eu juro que o relato que segue é a mais autêntica verdade, apesar das passagens aparentemente fantasiosas. Por mais inverossímil que vos possa parecer, trata-se de uma obra de veracidade da memória que aqui transcrevo.

Benévolo, o bardo

**
- De que se trata a missão mesmo, meu jovem? – perguntou meu acompanhante, Astolfo, o Bravo, famoso herói. Na verdade, era eu, como bardo, quem o acompanhava para que pudesse cantar sua esplêndida vitória mais tarde.

- O de sempre, meu senhor: um dragão recentemente anda rondando as proximidades da vila. O líder local teme que vidas humanas, ou pior, vidas bovinas sejam usurpadas pela fera. Os aldeões reuniram todas as suas reservas monetárias a fim de recompensar um valoroso herói que ponha um fim à ameaça tirânica de tal criatura vil. – Eu nunca entendi o fato dos dragões, criaturas centenárias, apreciarem tanto mudar a localização de seus esconderijos de tempos em tempos. E sempre nas proximidades de algum vilarejo.

- E você veio ver como age um herói?

- Não, vim acompanhar o senhor.

- Pois então, meu jovem! – Ele tinha nitidamente uns cinco anos a menos do que eu, mas mesmo assim insistia em me chamar de “meu jovem”. – Quando soube que Astolfo, o Bravo daria cabo da besta, veio correndo presenciar e se inspirar com meu feito, não foi isso?

- Na verdade, senhor, - de súbito eu odiei aquele homem e sua total ausência de humildade e modéstia, mas ainda mantinha minha refinada educação – fui eu quem primeiro chegou a esse este lugarejo. Mas até então desconhecia a abominável ameaça. Quando fui dela informado e da vossa conseqüente vinda, enxerguei excelente oportunidade para uma composição.

- Que seja, que seja...

Não íamos a cavalo para não atrair desnecessária atenção do monstro. Caminhávamos lentamente por uma trilha perfeita no mato e por entre o descampado. Astolfo, o Bravo era realmente uma figura impressionante: corpo musculoso; pele queimada pelo sol inclemente das estradas; vasta e revolta cabeleira loura; roupas protegidas com camadas de couro e metal em algumas partes, mas curtas o suficiente para exporem sua trabalhada musculatura e que o faziam tremer no frio invernal. Portava um belo e poderoso escudo circular e carregava na mão direita uma lança, que segundo ele, era mágica. Seu sorriso era perfeito e brilhante, que ele gostava de ostentar com freqüência. A expressão de confiança na face até mesmo conseguia camuflar os dois dentes frontais postiços. Astolfo era o orgulho de qualquer personal-hero-stylist.

- Quem são eles? – perguntei por fim, após longo silêncio.

Apontava para uma chusma de lavradores remendados, sujos e maltrapilhos que nos seguia. Homens, mulheres, jovens, velhos, velhas e crianças; todos nos olhavam atentamente, como se a qualquer momento um de nós tirasse um pombo da manga, feito aqueles ilusionistas baratos. Notei que alguns traziam cestos ou sacos com refeições, para que pudessem se saciar durante o espetáculo vindouro. Estranha prática que tem virado moda.

- Ah, eles? São meus fãs. – respondeu-me distraído.

- Fãs!

- Sim, meu jovem.

- A altivez de vossos fãs reverbera a vossa fama.

Ele apenas me deu um de seus estratégicos sorrisos. Obviamente não percebeu minha ironia.

Astolfo percorria o caminho muito sério, salvo quando falava comigo. Parecia preocupado, talvez concentrado bolando um estratagema para abater o dragão.

- De que maneira pretendeis subjugar a dracônica criatura, ó valoroso paladino? – perguntei.

- O quê?

- Como matareis o dragão?

- De modo muito simples – respondeu-me sorridente, - mas também de forma astuciosa – ele esboçou a melhor expressão de sagacidade que conseguiu.

- Contai a mim vosso intento.

- Primeiro entro na caverna, porque todo dragão que se preze mora numa caverna. É provável que ele esteja dormindo...

- Como sabeis? – interrompi-o.

- Dragões gostam de dormir, principalmente quando um herói está para invadir seu covil. E pare de fazer perguntas tolas! Depois analisarei a criatura em busca de um ponto fraco – ele gesticulava intensamente, encenando a situação hipotética. – Então bradarei um desafio heróico que irá aturdi-lo de medo, e não de sono como pensam alguns... Aproveitarei o momento para enfiar minha comprida lança.

- Ooooohhhhhh! – exclamou o bando que nos seguia, fazendo uma interpretação maldosa de duplo sentido da frase.

- Deveras, vosso plano é extremamente engenhoso...

- Aham, é tiro e queda. Um dia você chega lá, meu jovem.

Já havia me irritado o suficiente com Astolfo. Fui conversar com a caterva que nos seguia sobre o dragão, sobre o estilo de vida simples do campo e outras inutilidades. Logo me vi cercado por diversos rapazotes robustos de caras alegres. Conheço o tipinho, bastante comum: jovens pobres e sonhadores, ávidos em conseguir fama, fortuna e mulheres seguem a glamourosa carreira de herói aventureiro. Pegam uma mochila e roubam a faca da cozinha de suas mães, fazendo-as de espada e saem pelo mundo. A maioria não dura duas semanas. Alguns ainda conseguem voltar esfarrapados pra casa.

- Você conhece Astolfo, o Bravo? – perguntou-me um deles.

- Não. E vós, conheceis?

- Só de ouvido. Dizem que quando Astolfo espirra, os deuses lhe dizem “saúde”!

- Dizem que o minotauro não tinha chifres antes de Astolfo atingir a puberdade. – falou mais um, todo risonho.

- Basta, basta! Já entendi! Se Astolfo peidar, vós cheirais.

Já havia me irritado o suficiente com aquela gentalha. Decidi percorrer o restante do caminho longe de qualquer companhia humana.

Após um período relativamente longo de caminhada, aproximamo-nos do fim da trilha, finalmente:

- É o fim da picada. – anunciei.

- Oooohhhh! – fez a platéia em coro, novamente subvertendo o sentido.

- E exatamente como vós falastes, há realmente uma grande gruta à frente – me dirigi às proximidades da caverna e notei sinais no chão. - E vejais aqui: imensas pegadas! Certamente pertencentes ao dragão.

- Tem um dragão mesmo? – Astolfo estava pálido. Parecia extremamente surpreso.

- E o que é que esperáveis?

- Ah, sei lá. Aqui no meio do mato é tão sem graça. Sabe como são esses roceiros. Tendo uma garrafa como companheira noturna de tédio, eles enxergam de tudo: lobisomens, dragões, discos voadores... mas um dragão de verdade! ‘Tô fudido!

- Oooohhhh! – desaprovou a platéia. Um delicado rapazinho deu uma insinuada piscadela a Astolfo.

- E você! Não poderia ter arrumado testemunhas menos maliciosas? Ô gente depravada! – reclamou o herói.

- Ué! Não são vossos fãs?

- Ahn... Er... Bom... Devem ser. Fãs seus é que não são.

Ponderei por não retrucar a essa grosseria, pelo bem da minha integridade física. Porém incuti-lhe:

- Agora que sabemos que se trata de um dragão verdadeiro, é um alívio podermos contar com um herói verdadeiro.

Astolfo me deu como resposta um de seus sorrisões confiantes. Ele não era mesmo bom em perceber ironias. Dirigiu-se à entrada. Titubeou.

- Não estais com medo, estais? – provoquei.

- Medo? Medo! – ele se virou na minha direção furioso. – Então não conhece a fama de Astolfo o Bravo? Astolfo, o que chuta pedras descalço. Astolfo, o que discute a relação. Astolfo, o que come pastéis de rodoviária.

- Sim, vossa coragem é lendária. Desculpe-me, foi apenas uma brincadeira.

- E é só por isso que você ainda está vivo. Isso e o fato de que matar bardos dá azar. – Pôs-se a imitar uma galinha, gesto típico para afastar a má sorte. Pensei, rindo comigo, que se existisse um animal ao qual Astolfo pudesse ser associado, esse animal seria o que ele estava imitando naquele momento.

O herói começou a analisar a situação. Examinou as pegadas, mediu vagamente o diâmetro da entrada da caverna, observou as condições do relevo em torno e verificou a direção do vento. Ele realmente merecia um Prêmio de Teatro.

- E então?

- É mesmo um dragão. E dos grandes! Recomendo que fique do lado de fora, meu jovem. Pode ser perigoso.

- Se eu aqui permanecer, de que maneira poderei anunciar os detalhes do vosso fabuloso triunfo?

- Vocês poetas sempre mentem mesmo. – resmungou ele, mais para si do que para mim.

- Mas nunca sobre Astolfo, o Bravo. – respondi malicioso.

Ele pareceu ficar sem argumentos e se resignar definitivamente a enfrentar o dragão. Estampou seu último sorriso e adentrou o covil da fera, seguido a certa distância por mim e pelos espectadores, que agora mastigavam nervosamente algum tipo de alimento ruidoso.

Avançávamos da seguinte forma: Astolfo à frente, em posição de ataque e alerta; mais atrás eu com meu instrumento musical; e por fim a multidão que iluminava a cena parcamente com algumas tochas.

- Quereis que eu declame algo?

Interpretei o silêncio como uma afirmativa e iniciei uns versos improvisados no meu alaúde:

- Nas brumas da morte ele entrou, o mais bravo dos bravos,
Tendo apenas a coragem como lume.
No silêncio tonitruante, onde o medo dilacera as vísceras
Antes mesmo de qualquer ataque.
Que terrores indizíveis aguardam ao virar da próxima curva?
A criatura fatal, pronta a arrancar o último suspiro
Com um único golpe de dor lancinante...

- Quer calar a boca, pô! Não tá ajudando. – gemeu a voz do herói em reclamação, vinda do breu.

- Oh, perdão.

- Vai logo cagão! - veio um grito da platéia.

- Quem disse isso? – exigiu Astolfo. – Repete se for macho! – berrou em desafio. A multidão era todo silêncio.

Naquela quietude tumular em que Astolfo encarava cada um dos integrantes e que nos olhávamos mutuamente à procura do culpado, foi que ouvimos um aterrorizante rugido: o dragão. Gritaria e confusão gerais. As pessoas se esbarravam umas nas outras. Algumas tochas caíram no chão e se apagaram. Ouvimos sons de batalha: Astolfo estava em combate, só podia ser!

Quando nos recompomos, vimos o guerreiro apoiado em sua lança, tremendo.

- Onde está o dragão? – perguntei apavorado.

- Fugiu! – respondeu triunfante.

- O que é isso em vossas calças? – indiquei uma mancha comprida no vestuário dele, que começava a lançar pingos no chão.

- Fui ferido. – explicou-me sem jeito.

- Na genitália!

O “oooohhhh” da platéia dessa vez foi em piedade pela dor alheia. Os homens rapidamente trataram de proteger suas partes com as mãos.

- Que cheiro de urina é esse? – indaguei intrigado, farejando o ar. Gesto que foi seguido por todos. Astolfo acelerou o passou e rapidamente avançou em direção ao âmago da caverna.

Prosseguimos a passos tão curtos que nossos calcanhares tocavam a ponta dos dedos do outro pé. Foi então que uma forte e extremamente úmida lufada de vento nos atingiu. As chamas das tochas se extinguiram e nossos olhos viam apenas trevas. Ouvimos passos poderosos e uma respiração alta e ofegante. Então escutamos metal ser largado no chão e o som de corrida rumo à saída: Astolfo, o Bravo fugira.

Fiquei em estado catatônico, paralisado esperando pela baforada que me traria dor e morte. Mas ela não veio. O que veio foi uma risada. Uma risada que lembro até hoje. E que ainda hoje me deixa furioso:

- Ha-haiiiiiii-hi-hi!

Fortes luzes se acenderam por toda a parte. Nos breves momentos de fotofobia eu não distinguia nada.

- Sorrrria! Você está na “Pegadinha do Dragão”! – a platéia assobiava e aplaudia efusivamente.

À minha frente, quando recuperei a visão, vi um homem sorridente (mais um!) vestido com smoking e cartola roxos.

- Dê um tchau para a mamãe, você está na IMVITE! – ele me segurou pelo ombro e me moveu com uma violência gentil. Apontava para um homem barbudo, vestido com pijama de estrelinhas e chapéu pontudo, que segurava uma grande esfera de energia negra entre as mãos.

- IMVITE? – repeti bestificado.

- Exatommmm! IMagem VIsual TEletransportada, estamos-trabalhando-num-nome-melhor... Com ela, você pode transmitir uma imagem de qualquer lugar para qualquer lugar do continente através de um artefato mágico receptor!

- Qualquer lugar? – o espanto havia me deixado embasbacado e parecia haver drenado minha capacidade de formular frases por conta própria.

- Simmmm! Caros espectadores, enquanto nosso pato... Digo... Convidado se recupera, vamos ao intervalommm.

O homem do pijama apontou a esfera na direção de um dragão roxo e borrachento (fantasia que algum idiota vestia) num canto. Dançavam ao redor do falso dragão, as duas mulheres mais voluptuosas que eu já vi em toda a minha vida.

**
Após os acontecimentos daquele dia, passei muito tempo em terapia psicológica. E os altos preços das consultas me fizeram entender o porquê da profissão ser atualmente tão procurada por jovens estudantes em busca de dinheiro fácil.

20 de junho de 2008

Diário do Eloqüente (20/06/2008)

Loquaz diário, hoje à noitinha eu estava caminhando no centro da cidade vizinha para espairecer e não ser importunado por conversas desnecessárias no local onde resido.

Quando eu andava distraído e perdido em pensamentos fugidios, um carro foi parando ao meu lado vagarosamente. A princípio eu fiquei desconfiado. Poderia ser um seqüestrador ou um tarado me visando...

O carro pára e de repente uma voz ecoa de dentro do veículo perguntando:

- Oi! Tu sabe como é que eu faço pra chegar na prefeitura?

- Não...

Percebi a expressão de decepção do motorista.

- É que não moro aqui. - completei.

Gosto de fornecer a informação sempre completa. Ainda que isso me exija um esforço quase sobre-humano de articulação verbal.

12 de junho de 2008

O homem ideal é nerd

Muitas mulheres se perdem em sonhos e idealismos sobre o "homem ideal". Claro que isso gera muitas decepções, afinal especula-se que o homem ideal não exista. E isso é um engano. O homem ideal existe sim, e ele só poder ser um nerd. Vou demonstrar o porquê agora mesmo.

Hoje é dia dos namorados. Estava eu dialogando comigo mesmo quando me perguntei: "por que eu, um cara cheio de qualidades, estou sozinho? Só porque sou nerd?". Isto muito me intrigou, afinal, exatamente porque eu sou nerd é que eu deveria ser irresistível. Então, escrevi essa lista para provar que o que eu falo é verdade.

* O homem ideal é, acima de tudo, fiel. Se você namorar um nerd, suas únicas possíveis rivais serão a Princesa Leia e a Lara Croft. Um nerd não pega ninguém.

* O homem ideal é sempre sincero. A prática de mentir com convicção só provém da intensa prática social, coisa que um nerd jamais possuirá. Mesmo que ele minta, sua mentira será facilmente detectável.

* O homem ideal é sensível e carinhoso. Um nerd é carente. Suas únicas fontes de afeto são a mãe, a avó (se ainda vivas) e os animais de estimação. Logo, carinho ele tem de sobra para dar.

* O homem ideal é gentil. Um nerd é ansioso por aceitação, ele sempre será gentil com um amigo ou namorada em potencial.

* O homem ideal é inteligente. Ser inteligente é a maior (talvez a única) vantagem em ser nerd.

* O homem ideal diz coisas bonitas. Um nerd costuma ler poesias e dicionários, o que o favorece a falar palavras bonitas com freqüência.

* O homem ideal é bom de cama. A falta de prática dá ao nerd muito tempo para estudar a parte teórica. A prática se torna muito mais qualificada com um suporte teórico. Isso é só questão de tempo...

* O homem ideal tem vida financeira confortável. Um nerd é profissionalmente mais preparado e costuma arrumar bons empregos, numa espécie de vingança contra a sociedade de quando era um adolescente.

* O homem ideal é atento aos seus pedidos. Um nerd é palerma e imbecil, ele fará todas as vontades da única pessoa que lhe dá atenção.

* O homem ideal só tem olhos para a mulher amada. Um nerd é normalmente solitário. É óbvio que você se tornará o motivo da vida dele!

* O homem ideal é o marido ideal. Um nerd nunca impõe objeções em se casar, porque ele sabe que nunca mais conseguirá arrumar outra namorada na vida.

* O homem ideal é lindo. Aqui temos um problema. Um nerd costuma ser assustadoramente feio. Entretanto, muito dessa feiúra vem do fato de que um nerd não sabe se vestir. E como todos sabem, muito da boa aparência é causada pelo vestuário. Basta uma roupa da moda e o seu nerd estará, pelo menos, "simpático".

* Além de tudo isso, um nerd possui outras qualidades extras, como o fato de não ter amigos e ser um péssimo esportista. Ou seja, nada de futebol nos finais de semana (pela TV ou não), nem de cervejinha com os amigos depois do trabalho.

* E, para finalizar, um nerd prestam atenção exagerada a computadores, video-games, dados multifacetados, livros, HQs e calculadoras. Esquecem da "vida real" (até porque eles nunca tiveram uma). Isto é, possuem vocação para serem cornos. Portanto, você poderá usufruir de um namorado/marido/pato nerd e ter, paralelamente, um amante melhorzinho. Se ele descobrir a sua traição, é bem provável que ele até te perdoe, afinal, ele é um nerd.

9 de junho de 2008

Sobre o homem. Com a palavra: um cão

Não gosto muito de postar produções de outras pessoas no meu blog. Mas essa eu achei tão legal, tão supimpa que dei uma chance...

É um trecho do livro "Névoa" de Miguel de Unamuno, em que o cachorro Orfeo disserta sobre o homem e a sua relação com sua espécie, os cachorros.

"(...) Que animal estranho é o homem!
(...)
Nós, os cães, uivávamos, mas para imitar o homem aprendemos a ladrar. E nem assim conseguimos nos entender com ele. Só os entendemos de fato quando ele uiva. Quando o homem uiva, ou grita, ou ameaça, nós o entendemos muito bem, nós, os outros animais. É como se nesses momentos não estivesse distraído em outro mundo qualquer!... Mas ele ladra à sua maneira, fala, e isso lhe serviu para inventar o que não existe, ao invés de ficar naquilo que existe. Quando põe nome em alguma coisa, já não vê essa coisa, mas apenas ouve o nome que lhe deu, ou o vê escrito em alguma parte. A língua lhe serve para mentir, inventar o que não existe e confundir-se. E tudo nele é pretexto para falar com os outros ou consigo mesmo. Chegou ao ponto de contagiar nós, os cães!
(...)
E querendo nos transformar em farsantes, em macacos e cães sábios! Chamam de cães inteligentes aqueles aos quais ensinam a reperesentar farsas, quando os vestem e os ensinam a andar indecorosamente sobre as patas traseiras, em pé! Cães inteligentes! É a isso que os homens chamam inteligência! Representar farsas e andar sobre dois pés! (...)"

UNAMUNO, Miguel de. Névoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 184-185.

24 de março de 2008

Diário do Eloqüente (24/03/2008)

Loquaz diário, hoje fui ao banco. E como de costume me deparei com aquela quilométrica fila até o solitário a abatido caixa em funcionamento.

Naquela espera tediosa, uma senhora tenta iniciar uma interessante conversa comigo. Comigo. Logo comigo!:

- Calor hoje, né?

- Ô!

- Mas tem umas nuvens aparecendo e o sol já começa a ficar encoberto. Será que chove?

- Talvez...

- Eu vi no noticiário do meio-dia, quando passou a previsão do tempo que ia chover hoje a tarde.

- ...

- Tomara que chova mesmo, não dá mais pra agüentar esse calorão que não pára! E essa seca no interior do estado ainda por cima. Seria bom se chovesse, né?

- Aham.

- Mas teria que ser uma chuva consistente que molhasse bem o chão e desse uma refrescada. Porque esse calor danado! Ainda mais aqui no vale que não tem nenhuma brisa! Tudo culpa do Efeito Estufa, só pode. Blá-blá-blá...

E ela prosseguiu nesse falatório relevante durante todo o torturante percurso até o caixa.

Ainda bem, diário, que temos conversas tão interessantes como a desta tarde no banco para nos livrar do tédio cotidiano.

Cansado

Estou cansado.
Cansado de acordar as manhãs.
Cansado de ver o dia nascer e morrer ante meus olhos cansados de ver.

Cansado de observar a lua nua crua na rua me mirando do céu,
como se até ela notasse e anunciasse o meu cansaço.

Cansado de toda essa gente
zanzando intermitente,
epalhando pólen e colhendo néctar para levar o mel
a uma colméia sem rainha.

Cansado de ouvir o som,
esse zum-zum-zum irritante
de anúncio altissonante
do tédio que não tem fim.

Cansado de cheirar o monstruoso amontoado mal-cheiroso
de um mundo supérfice que apodrece.

Cansado de tanto arrosto
apenas para provar o gosto insosso
e tocar a parede fria
num sem-sentido dos sentidos.

Cansado de fazer planos
para um futuro que nunca chega.
Um futuro que não existe fora dos meus sonhos cansados de sonhar.

1 de março de 2008

Eu

Eu. Meu. Teu.

Eu: fariseu ou filisteu? Talvez, quem sabe, apenas um mutante Proteu. Sei eu.

No mundo existem bilhões de eu. Mas nenhum deles me importa. Tudo o que me interessa sou eu, bilhões de vezes eu.

Quem sou eu? Nem apaixonado Romeu, nem heróico Perseu, nem potente Briareu, sou eu apenas um desconhecido plebeu.

E aí, entendeu? Que merda, então fodeu.

9 de fevereiro de 2008

Preguiça

De todos os pecados criados, inventados praticados, instituídos, sagrados ou consagrados, nenhum me aflige mais do que a preguiça.

Se me perguntassem por que é que afinal eu sinto tanta preguiça, por que sempre tão cansado se pouco ou nada fiz pra ficar nesse estado? Provavelmente eu respondesse: "ora, de viver, é claro! Viver é exaustivo". O simples fato de estar vivo é tão enfadonhamente cansativo...

Mas não é essa a minha resposta corriqueira. A resposta é sempre um sorrisinho constrangido e condecendente. A resposta mais provável não lhes digo, com medo de me considerarem pusilânime e fraco. Talvez eu o seja, mas obviamente prefiro não admitir, e por isso calo. Sinto preguiça de explicar.

30 de janeiro de 2008

Mona: necrológio

Mona: ??/03/1995 a 30/10/2007.

Hoje se completam 3 meses que minha cachorra Mona faleceu. Porque não escrevi nada antes? Talvez por querer um tempo para pensar no que escrever, sem que os sentimentos prejudicassem. Agora vejo que foi bobagem. Teria sido muito mais verdadeiro.

Pensei em escrever milhões de coisas que ocupariam muito espaço, mas chegando aqui percebo que nada que eu escreva vai chegar perto de transmitir o afeto que eu devotava a ela. Opto, portanto, em nada escrever. Ela iria entender. Sempre me entendeu sem precisar de palavras.

O que posso dizer, relacionando esse fato comigo é que percebi que meu choro não foi por ela morrer. Isso acontece com todos. É natural, inescapável. O choro e o pesar foram por mim. Por eu não saber que nunca mais teria ela, que eu amei, por perto. O choro de morte é o mais egoísta de todos.

Adeus Mona. Repouse plácida sob a relva, e leve contigo meu afeto mais puro e minha dor mais profunda.

4 de janeiro de 2008

Livros lidos em 2007

1- O Nome da Rosa (Umberto Eco)
2- O Alquimista (Paulo Coelho)
3- As Viagens "Il Milione" (Marco Polo)
4- Hamlet (William Shakespeare)
5- As Doutrinas Existencialistas (Régis Jolivet)
6- Confissão do Minotauro (Max Mallmann)
7- A Náusea (Jean Paul Sartre)
8- Apologia da História (Marc Bloch)
9- Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher (Nicole Loraux)
10- Sandman, caçadores de sonhos (Neil Gaiman)
11- Belas Maldições (Terry Pratchett e Neil Gaiman)
12- Alceste (Eurípedes)
13- Humano, Demasiado Humano (Friedrich Nietzsche)
14- O Tartufo; A Escola de Mulheres; O Burguês Fidalgo (Molière)
15- Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll)
16- Otelo (William Shakespeare)
17- Guia do Mochileiro das Galáxias (Douglas Adams)
18- Crônicas de Artur, vol 1: O Rei do Inverno (Bernard Cornwell)
19- Síndrome de Quimera (Max Mallmann)
20- 1984 (George Orwell)
21- Gargantua (François Rabelais)
22- A Espada Diabólica (Michael Moorcock)
23- Compreender Sócrates (Louis-André Dorion)
24- Beowulf
25- Escritos de William Blake (William Blake)
26- Assim Falou Zaratustra (Friedrich Nietzsche)
27- Sonho de Uma Noite de Verão (William Shakespeare)
28- A Necessidade Metafísica (Arthur Schopenhauer)
29- A Metamorfose (Franz Kafka)
30- O Cavaleiro Inexistente (Italo Calvino)
31- A Cruzada das Crianças (Marcel Schwob)
32- O Mito de Sísifo (Albert Camus)
33- A Queda (Albert Camus)
34- A Prostituta Respeitosa (Jean-Paul Sartre)
35- Poemas em Prosa e Salomé (Oscar Wilde)
36- Dicionário do Diabo (Ambrose Bierce)
37- Escola dos Annales (José Carlos Reis)
38- Historiografia (Charles-Olivier Carbonell)
39- Idade Média, Idade dos Homens (Georges Duby)
40- Introdução ao Existencialismo (Robert G. Olson)
41- A Peste (Albert Camus)
42- Avaliação Pedagógica (Maria Celina Melchior)
43- Salto sobre a Sombra (Suzana Stein)
44- Aléctrion, o Galo (Tassilo Orpheu Spalding)
45- Os Sofrimentos de Werther (Johann Wolfgang von Goethe)