23 de junho de 2008

Astolfo contra o dragão

Esse é um conto que, inicialmente, eu escrevi pra lista de discussão sobre Tormenta, cenário de RPG brasileiro. Aqui eu retirei todas as citações e referências feitas ao cenário. Assim, mesmo alguém que não saiba nada sobre Tormenta ou RPG entenderá o conto que segue. Entretanto, o universo geral na qual se passa o conto continua sendo a fantasia medieval, com animais fantásticos, nobres guerreiros, camponeses, magia e tecnologia rudimentar.

A história gira em torno de um talvez herói que tem a missão de derrotar um maligno dragão. O enredo tem a pretensão de ser cômico, então os exageros, as ironias, o ridículo e o non-sense não devem espantar o leitor que se deixará levar por essas passagens se quiser melhor aproveitar a história.

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Astolfo contra o dragão
Eu juro que o relato que segue é a mais autêntica verdade, apesar das passagens aparentemente fantasiosas. Por mais inverossímil que vos possa parecer, trata-se de uma obra de veracidade da memória que aqui transcrevo.

Benévolo, o bardo

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- De que se trata a missão mesmo, meu jovem? – perguntou meu acompanhante, Astolfo, o Bravo, famoso herói. Na verdade, era eu, como bardo, quem o acompanhava para que pudesse cantar sua esplêndida vitória mais tarde.

- O de sempre, meu senhor: um dragão recentemente anda rondando as proximidades da vila. O líder local teme que vidas humanas, ou pior, vidas bovinas sejam usurpadas pela fera. Os aldeões reuniram todas as suas reservas monetárias a fim de recompensar um valoroso herói que ponha um fim à ameaça tirânica de tal criatura vil. – Eu nunca entendi o fato dos dragões, criaturas centenárias, apreciarem tanto mudar a localização de seus esconderijos de tempos em tempos. E sempre nas proximidades de algum vilarejo.

- E você veio ver como age um herói?

- Não, vim acompanhar o senhor.

- Pois então, meu jovem! – Ele tinha nitidamente uns cinco anos a menos do que eu, mas mesmo assim insistia em me chamar de “meu jovem”. – Quando soube que Astolfo, o Bravo daria cabo da besta, veio correndo presenciar e se inspirar com meu feito, não foi isso?

- Na verdade, senhor, - de súbito eu odiei aquele homem e sua total ausência de humildade e modéstia, mas ainda mantinha minha refinada educação – fui eu quem primeiro chegou a esse este lugarejo. Mas até então desconhecia a abominável ameaça. Quando fui dela informado e da vossa conseqüente vinda, enxerguei excelente oportunidade para uma composição.

- Que seja, que seja...

Não íamos a cavalo para não atrair desnecessária atenção do monstro. Caminhávamos lentamente por uma trilha perfeita no mato e por entre o descampado. Astolfo, o Bravo era realmente uma figura impressionante: corpo musculoso; pele queimada pelo sol inclemente das estradas; vasta e revolta cabeleira loura; roupas protegidas com camadas de couro e metal em algumas partes, mas curtas o suficiente para exporem sua trabalhada musculatura e que o faziam tremer no frio invernal. Portava um belo e poderoso escudo circular e carregava na mão direita uma lança, que segundo ele, era mágica. Seu sorriso era perfeito e brilhante, que ele gostava de ostentar com freqüência. A expressão de confiança na face até mesmo conseguia camuflar os dois dentes frontais postiços. Astolfo era o orgulho de qualquer personal-hero-stylist.

- Quem são eles? – perguntei por fim, após longo silêncio.

Apontava para uma chusma de lavradores remendados, sujos e maltrapilhos que nos seguia. Homens, mulheres, jovens, velhos, velhas e crianças; todos nos olhavam atentamente, como se a qualquer momento um de nós tirasse um pombo da manga, feito aqueles ilusionistas baratos. Notei que alguns traziam cestos ou sacos com refeições, para que pudessem se saciar durante o espetáculo vindouro. Estranha prática que tem virado moda.

- Ah, eles? São meus fãs. – respondeu-me distraído.

- Fãs!

- Sim, meu jovem.

- A altivez de vossos fãs reverbera a vossa fama.

Ele apenas me deu um de seus estratégicos sorrisos. Obviamente não percebeu minha ironia.

Astolfo percorria o caminho muito sério, salvo quando falava comigo. Parecia preocupado, talvez concentrado bolando um estratagema para abater o dragão.

- De que maneira pretendeis subjugar a dracônica criatura, ó valoroso paladino? – perguntei.

- O quê?

- Como matareis o dragão?

- De modo muito simples – respondeu-me sorridente, - mas também de forma astuciosa – ele esboçou a melhor expressão de sagacidade que conseguiu.

- Contai a mim vosso intento.

- Primeiro entro na caverna, porque todo dragão que se preze mora numa caverna. É provável que ele esteja dormindo...

- Como sabeis? – interrompi-o.

- Dragões gostam de dormir, principalmente quando um herói está para invadir seu covil. E pare de fazer perguntas tolas! Depois analisarei a criatura em busca de um ponto fraco – ele gesticulava intensamente, encenando a situação hipotética. – Então bradarei um desafio heróico que irá aturdi-lo de medo, e não de sono como pensam alguns... Aproveitarei o momento para enfiar minha comprida lança.

- Ooooohhhhhh! – exclamou o bando que nos seguia, fazendo uma interpretação maldosa de duplo sentido da frase.

- Deveras, vosso plano é extremamente engenhoso...

- Aham, é tiro e queda. Um dia você chega lá, meu jovem.

Já havia me irritado o suficiente com Astolfo. Fui conversar com a caterva que nos seguia sobre o dragão, sobre o estilo de vida simples do campo e outras inutilidades. Logo me vi cercado por diversos rapazotes robustos de caras alegres. Conheço o tipinho, bastante comum: jovens pobres e sonhadores, ávidos em conseguir fama, fortuna e mulheres seguem a glamourosa carreira de herói aventureiro. Pegam uma mochila e roubam a faca da cozinha de suas mães, fazendo-as de espada e saem pelo mundo. A maioria não dura duas semanas. Alguns ainda conseguem voltar esfarrapados pra casa.

- Você conhece Astolfo, o Bravo? – perguntou-me um deles.

- Não. E vós, conheceis?

- Só de ouvido. Dizem que quando Astolfo espirra, os deuses lhe dizem “saúde”!

- Dizem que o minotauro não tinha chifres antes de Astolfo atingir a puberdade. – falou mais um, todo risonho.

- Basta, basta! Já entendi! Se Astolfo peidar, vós cheirais.

Já havia me irritado o suficiente com aquela gentalha. Decidi percorrer o restante do caminho longe de qualquer companhia humana.

Após um período relativamente longo de caminhada, aproximamo-nos do fim da trilha, finalmente:

- É o fim da picada. – anunciei.

- Oooohhhh! – fez a platéia em coro, novamente subvertendo o sentido.

- E exatamente como vós falastes, há realmente uma grande gruta à frente – me dirigi às proximidades da caverna e notei sinais no chão. - E vejais aqui: imensas pegadas! Certamente pertencentes ao dragão.

- Tem um dragão mesmo? – Astolfo estava pálido. Parecia extremamente surpreso.

- E o que é que esperáveis?

- Ah, sei lá. Aqui no meio do mato é tão sem graça. Sabe como são esses roceiros. Tendo uma garrafa como companheira noturna de tédio, eles enxergam de tudo: lobisomens, dragões, discos voadores... mas um dragão de verdade! ‘Tô fudido!

- Oooohhhh! – desaprovou a platéia. Um delicado rapazinho deu uma insinuada piscadela a Astolfo.

- E você! Não poderia ter arrumado testemunhas menos maliciosas? Ô gente depravada! – reclamou o herói.

- Ué! Não são vossos fãs?

- Ahn... Er... Bom... Devem ser. Fãs seus é que não são.

Ponderei por não retrucar a essa grosseria, pelo bem da minha integridade física. Porém incuti-lhe:

- Agora que sabemos que se trata de um dragão verdadeiro, é um alívio podermos contar com um herói verdadeiro.

Astolfo me deu como resposta um de seus sorrisões confiantes. Ele não era mesmo bom em perceber ironias. Dirigiu-se à entrada. Titubeou.

- Não estais com medo, estais? – provoquei.

- Medo? Medo! – ele se virou na minha direção furioso. – Então não conhece a fama de Astolfo o Bravo? Astolfo, o que chuta pedras descalço. Astolfo, o que discute a relação. Astolfo, o que come pastéis de rodoviária.

- Sim, vossa coragem é lendária. Desculpe-me, foi apenas uma brincadeira.

- E é só por isso que você ainda está vivo. Isso e o fato de que matar bardos dá azar. – Pôs-se a imitar uma galinha, gesto típico para afastar a má sorte. Pensei, rindo comigo, que se existisse um animal ao qual Astolfo pudesse ser associado, esse animal seria o que ele estava imitando naquele momento.

O herói começou a analisar a situação. Examinou as pegadas, mediu vagamente o diâmetro da entrada da caverna, observou as condições do relevo em torno e verificou a direção do vento. Ele realmente merecia um Prêmio de Teatro.

- E então?

- É mesmo um dragão. E dos grandes! Recomendo que fique do lado de fora, meu jovem. Pode ser perigoso.

- Se eu aqui permanecer, de que maneira poderei anunciar os detalhes do vosso fabuloso triunfo?

- Vocês poetas sempre mentem mesmo. – resmungou ele, mais para si do que para mim.

- Mas nunca sobre Astolfo, o Bravo. – respondi malicioso.

Ele pareceu ficar sem argumentos e se resignar definitivamente a enfrentar o dragão. Estampou seu último sorriso e adentrou o covil da fera, seguido a certa distância por mim e pelos espectadores, que agora mastigavam nervosamente algum tipo de alimento ruidoso.

Avançávamos da seguinte forma: Astolfo à frente, em posição de ataque e alerta; mais atrás eu com meu instrumento musical; e por fim a multidão que iluminava a cena parcamente com algumas tochas.

- Quereis que eu declame algo?

Interpretei o silêncio como uma afirmativa e iniciei uns versos improvisados no meu alaúde:

- Nas brumas da morte ele entrou, o mais bravo dos bravos,
Tendo apenas a coragem como lume.
No silêncio tonitruante, onde o medo dilacera as vísceras
Antes mesmo de qualquer ataque.
Que terrores indizíveis aguardam ao virar da próxima curva?
A criatura fatal, pronta a arrancar o último suspiro
Com um único golpe de dor lancinante...

- Quer calar a boca, pô! Não tá ajudando. – gemeu a voz do herói em reclamação, vinda do breu.

- Oh, perdão.

- Vai logo cagão! - veio um grito da platéia.

- Quem disse isso? – exigiu Astolfo. – Repete se for macho! – berrou em desafio. A multidão era todo silêncio.

Naquela quietude tumular em que Astolfo encarava cada um dos integrantes e que nos olhávamos mutuamente à procura do culpado, foi que ouvimos um aterrorizante rugido: o dragão. Gritaria e confusão gerais. As pessoas se esbarravam umas nas outras. Algumas tochas caíram no chão e se apagaram. Ouvimos sons de batalha: Astolfo estava em combate, só podia ser!

Quando nos recompomos, vimos o guerreiro apoiado em sua lança, tremendo.

- Onde está o dragão? – perguntei apavorado.

- Fugiu! – respondeu triunfante.

- O que é isso em vossas calças? – indiquei uma mancha comprida no vestuário dele, que começava a lançar pingos no chão.

- Fui ferido. – explicou-me sem jeito.

- Na genitália!

O “oooohhhh” da platéia dessa vez foi em piedade pela dor alheia. Os homens rapidamente trataram de proteger suas partes com as mãos.

- Que cheiro de urina é esse? – indaguei intrigado, farejando o ar. Gesto que foi seguido por todos. Astolfo acelerou o passou e rapidamente avançou em direção ao âmago da caverna.

Prosseguimos a passos tão curtos que nossos calcanhares tocavam a ponta dos dedos do outro pé. Foi então que uma forte e extremamente úmida lufada de vento nos atingiu. As chamas das tochas se extinguiram e nossos olhos viam apenas trevas. Ouvimos passos poderosos e uma respiração alta e ofegante. Então escutamos metal ser largado no chão e o som de corrida rumo à saída: Astolfo, o Bravo fugira.

Fiquei em estado catatônico, paralisado esperando pela baforada que me traria dor e morte. Mas ela não veio. O que veio foi uma risada. Uma risada que lembro até hoje. E que ainda hoje me deixa furioso:

- Ha-haiiiiiii-hi-hi!

Fortes luzes se acenderam por toda a parte. Nos breves momentos de fotofobia eu não distinguia nada.

- Sorrrria! Você está na “Pegadinha do Dragão”! – a platéia assobiava e aplaudia efusivamente.

À minha frente, quando recuperei a visão, vi um homem sorridente (mais um!) vestido com smoking e cartola roxos.

- Dê um tchau para a mamãe, você está na IMVITE! – ele me segurou pelo ombro e me moveu com uma violência gentil. Apontava para um homem barbudo, vestido com pijama de estrelinhas e chapéu pontudo, que segurava uma grande esfera de energia negra entre as mãos.

- IMVITE? – repeti bestificado.

- Exatommmm! IMagem VIsual TEletransportada, estamos-trabalhando-num-nome-melhor... Com ela, você pode transmitir uma imagem de qualquer lugar para qualquer lugar do continente através de um artefato mágico receptor!

- Qualquer lugar? – o espanto havia me deixado embasbacado e parecia haver drenado minha capacidade de formular frases por conta própria.

- Simmmm! Caros espectadores, enquanto nosso pato... Digo... Convidado se recupera, vamos ao intervalommm.

O homem do pijama apontou a esfera na direção de um dragão roxo e borrachento (fantasia que algum idiota vestia) num canto. Dançavam ao redor do falso dragão, as duas mulheres mais voluptuosas que eu já vi em toda a minha vida.

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Após os acontecimentos daquele dia, passei muito tempo em terapia psicológica. E os altos preços das consultas me fizeram entender o porquê da profissão ser atualmente tão procurada por jovens estudantes em busca de dinheiro fácil.

20 de junho de 2008

Diário do Eloqüente (20/06/2008)

Loquaz diário, hoje à noitinha eu estava caminhando no centro da cidade vizinha para espairecer e não ser importunado por conversas desnecessárias no local onde resido.

Quando eu andava distraído e perdido em pensamentos fugidios, um carro foi parando ao meu lado vagarosamente. A princípio eu fiquei desconfiado. Poderia ser um seqüestrador ou um tarado me visando...

O carro pára e de repente uma voz ecoa de dentro do veículo perguntando:

- Oi! Tu sabe como é que eu faço pra chegar na prefeitura?

- Não...

Percebi a expressão de decepção do motorista.

- É que não moro aqui. - completei.

Gosto de fornecer a informação sempre completa. Ainda que isso me exija um esforço quase sobre-humano de articulação verbal.

12 de junho de 2008

O homem ideal é nerd

Muitas mulheres se perdem em sonhos e idealismos sobre o "homem ideal". Claro que isso gera muitas decepções, afinal especula-se que o homem ideal não exista. E isso é um engano. O homem ideal existe sim, e ele só poder ser um nerd. Vou demonstrar o porquê agora mesmo.

Hoje é dia dos namorados. Estava eu dialogando comigo mesmo quando me perguntei: "por que eu, um cara cheio de qualidades, estou sozinho? Só porque sou nerd?". Isto muito me intrigou, afinal, exatamente porque eu sou nerd é que eu deveria ser irresistível. Então, escrevi essa lista para provar que o que eu falo é verdade.

* O homem ideal é, acima de tudo, fiel. Se você namorar um nerd, suas únicas possíveis rivais serão a Princesa Leia e a Lara Croft. Um nerd não pega ninguém.

* O homem ideal é sempre sincero. A prática de mentir com convicção só provém da intensa prática social, coisa que um nerd jamais possuirá. Mesmo que ele minta, sua mentira será facilmente detectável.

* O homem ideal é sensível e carinhoso. Um nerd é carente. Suas únicas fontes de afeto são a mãe, a avó (se ainda vivas) e os animais de estimação. Logo, carinho ele tem de sobra para dar.

* O homem ideal é gentil. Um nerd é ansioso por aceitação, ele sempre será gentil com um amigo ou namorada em potencial.

* O homem ideal é inteligente. Ser inteligente é a maior (talvez a única) vantagem em ser nerd.

* O homem ideal diz coisas bonitas. Um nerd costuma ler poesias e dicionários, o que o favorece a falar palavras bonitas com freqüência.

* O homem ideal é bom de cama. A falta de prática dá ao nerd muito tempo para estudar a parte teórica. A prática se torna muito mais qualificada com um suporte teórico. Isso é só questão de tempo...

* O homem ideal tem vida financeira confortável. Um nerd é profissionalmente mais preparado e costuma arrumar bons empregos, numa espécie de vingança contra a sociedade de quando era um adolescente.

* O homem ideal é atento aos seus pedidos. Um nerd é palerma e imbecil, ele fará todas as vontades da única pessoa que lhe dá atenção.

* O homem ideal só tem olhos para a mulher amada. Um nerd é normalmente solitário. É óbvio que você se tornará o motivo da vida dele!

* O homem ideal é o marido ideal. Um nerd nunca impõe objeções em se casar, porque ele sabe que nunca mais conseguirá arrumar outra namorada na vida.

* O homem ideal é lindo. Aqui temos um problema. Um nerd costuma ser assustadoramente feio. Entretanto, muito dessa feiúra vem do fato de que um nerd não sabe se vestir. E como todos sabem, muito da boa aparência é causada pelo vestuário. Basta uma roupa da moda e o seu nerd estará, pelo menos, "simpático".

* Além de tudo isso, um nerd possui outras qualidades extras, como o fato de não ter amigos e ser um péssimo esportista. Ou seja, nada de futebol nos finais de semana (pela TV ou não), nem de cervejinha com os amigos depois do trabalho.

* E, para finalizar, um nerd prestam atenção exagerada a computadores, video-games, dados multifacetados, livros, HQs e calculadoras. Esquecem da "vida real" (até porque eles nunca tiveram uma). Isto é, possuem vocação para serem cornos. Portanto, você poderá usufruir de um namorado/marido/pato nerd e ter, paralelamente, um amante melhorzinho. Se ele descobrir a sua traição, é bem provável que ele até te perdoe, afinal, ele é um nerd.

9 de junho de 2008

Sobre o homem. Com a palavra: um cão

Não gosto muito de postar produções de outras pessoas no meu blog. Mas essa eu achei tão legal, tão supimpa que dei uma chance...

É um trecho do livro "Névoa" de Miguel de Unamuno, em que o cachorro Orfeo disserta sobre o homem e a sua relação com sua espécie, os cachorros.

"(...) Que animal estranho é o homem!
(...)
Nós, os cães, uivávamos, mas para imitar o homem aprendemos a ladrar. E nem assim conseguimos nos entender com ele. Só os entendemos de fato quando ele uiva. Quando o homem uiva, ou grita, ou ameaça, nós o entendemos muito bem, nós, os outros animais. É como se nesses momentos não estivesse distraído em outro mundo qualquer!... Mas ele ladra à sua maneira, fala, e isso lhe serviu para inventar o que não existe, ao invés de ficar naquilo que existe. Quando põe nome em alguma coisa, já não vê essa coisa, mas apenas ouve o nome que lhe deu, ou o vê escrito em alguma parte. A língua lhe serve para mentir, inventar o que não existe e confundir-se. E tudo nele é pretexto para falar com os outros ou consigo mesmo. Chegou ao ponto de contagiar nós, os cães!
(...)
E querendo nos transformar em farsantes, em macacos e cães sábios! Chamam de cães inteligentes aqueles aos quais ensinam a reperesentar farsas, quando os vestem e os ensinam a andar indecorosamente sobre as patas traseiras, em pé! Cães inteligentes! É a isso que os homens chamam inteligência! Representar farsas e andar sobre dois pés! (...)"

UNAMUNO, Miguel de. Névoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 184-185.