30 de dezembro de 2010

Livros Lidos em 2010

Modelo:

Título do livro (Autor)
[Definição/assunto, editora, número de páginas, complemento]

Livros lidos em 2010:


1- Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis)
[Romance, Klick, 240 páginas]

2- Extensão do Domínio da Luta (Michel Houellebecq)
[Romance, Sulina, 142 páginas]

3- O Homem Revoltado (Albert Camus)
[Ensaio filosófico, Record, 352 páginas]

4- Lira dos Vinte Anos; Noite na Taverna (Álvares de Azevedo)
[Poesia e Novela, Novo Século, 271 páginas]

5- Nariz de Vidro (Mario Quintana)
[Poesia, Moderna, 88 páginas]

6- Viagem ao Extremo Sul da Solidão (Juremir Machado da Silva)
[Romance, Sulina, 283 páginas]

7- Até Mais e Obrigado pelos Peixes (Douglas Adams)
[Romance, Sextante, 203 páginas]

8- Residência na Terra II (Pablo Neruda)
[Poesia, L&PM Pocket, 200 páginas, bilíngue espanhol/português]

9- Pedaços de Morte no Coração (Flávio Koutzii)
[Memórias, L&PM, 149 páginas]

10- Antologia Poética (Cecília Meireles)
[Poesia, Nova Fronteira, 307 páginas]

11- O Homem do Princípio ao Fim (Millôr Fernandes)
[Teatro, L&PM Pocket, 136 páginas]

12- Édipo Rei (Sófocles)
[Teatro, L&PM Pocket, 108 páginas]

13- Lira Pós-Moderna (José Hildebrando Dacanal)
[Poesia, Leitura XXI/Soles, 107 páginas]

14- Praticamente Inofensiva (Douglas Adams)
[ Romance, Sextante, 206 páginas]

15- No Que Acredito (Bertrand Russell)
[Ensaio Filosófico, L&PM Pocket, 104 páginas]

16- Metamorfoses da Cultura Liberal (Gilles Lipovetsky)
[Sociologia, Sulina, 88 páginas]

17- On the Road (Jack Kerouac)
[Romance, Ediouro, 382 páginas]

18- O Mal-Estar da Pós-Modernidade (Zygmunt Bauman)
[Sociologia, Jorge Zahar, 276 páginas]

19- Cioran - Entrevistas com Sylvie Jadeau (Cioran, Jadeau)
[Entrevista/Filosofia, Sulina, 80 páginas]

20- Sobre o Nomadismo (Michel Maffesoli)
[Sociologia, Record, 205 páginas]

21- O Centésimo em Roma (Max Mallmann)
[Romance, Rocco, 424 páginas]

22- Adiós, Baby (Juremir Machado da Silva)
[Novela, Sulina, 167 páginas]

23- A Porta Aberta para a Vacuidade (Kenchen Thrangu Rimpochê)
[Budismo, Bodigaya, 72 páginas]

24- Areia nos Dentes (Antônio Xerxenesky)
[Romance, Não Editora, 144 páginas]

A alma de "On the Road"

Excertos da obra de Jack Kerouac, "On the Road", editada pela Ediouro. Os dois trechos abaixo representam, pra mim, o essencial de On the Road, a inconsequência, egoísta e/ou ingênua, a inadequação, o desejo de transcendência através da explosão de vida, pura e simplesmente:

"Agora saca só esse pessoal aí na frente. Estão preocupados, contando os quilômetros, pensando em onde irão dormir essa noite, quanto dinheiro vão gastar na gasolina, se o tempo estará bom, de que maneira chegarão onde pretendem - e quando terminarem de pensar já terão chegado onde queriam, percebe? Mas parece que eles têm que se preocupar e trair suas horas, cada minuto e cada segundo, entregando-se a tarefas aparentemente urgentes, todas falsas; ou então a desejos caprichosos puramente angustiados e angustiantes, suas mentes jamais descansam, não encontram paz, a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada, e tendo encontrado uma, assumem expressões faciais adequadas, graves e circunspectas, e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de pura infelicidade, e durante todo esse tempo a vida passa voando por eles e eles sabem disso, e isso também os preocupa, num círculo vicioso que não tem fim."

"Olhei pela janela. Lá estava ele, sozinho no limiar da porta, curtindo a efervescência da rua. Amarguras, recriminações, conselhos, tristeza - tudo lhe pesava nas costas enquanto à sua frente descortinava-se a alegria esfarrapada e extasiante de simplesmente ser."

29 de dezembro de 2010

Frases de sabedoria em 140 caracteres, ou menos

Frases postadas entre março de 2010 e dezembro de 2010 no twiter: http://twitter.com/kainof


Quanto mais eu sei o que sei, menos eu sei se sei o que sei...

Às vezes eu penso que deveria ter mais consideração pelos meus semelhantes. Mas isso logo passa e eu volto ao normal depois de um bom café.

Eu às vezes superestimo a capacidade das pessoas de serem cruelmente sarcásticas. Projeto nelas características minhas...

Agora que Saramago morreu, estou doido pra ler um livro dele. Afinal, todos sabem que os únicos escritores que prestam já morreram...

Se eu aproveitasse o tempo que gasto comendo, dormindo ou na internet viveria melhor. Preciso estabelecer prioridades: vou parar de comer.

Felizes são as amebas que não têm um cérebro que pensa e uma coluna que dói.

Convém não confundir melancolia com tristeza. A 1ª era ligada à maturidade pelos sábios gregos. A 2ª é motivo para emos praticarem cutting.

A procrastinação fez com que Hamlet morresse. Mártir. Herói.

São duros estes tempos em que o ser tem de escolher o que desenvolver no corpo: o cérebro, o bíceps ou o estômago...

Diante de tantas escolhas na sociedade atual, muitas pessoas escolhem não fazer escolha alguma. Acho digno. É a rebeldia pós-moderna.

A atitude do "foda-se" é catárquica. Não a palavra, que é só um signo. Mas o comportamento foda-se. Parece rebeldia, mas não é. É só foda-se

Todo espírito avesso ao seu tempo está destinado à solidão.

Não tenho apenas uma vida, mas várias. Uma em cada lugar. E nenhuma conhece a outra. São todas vidas desencontradas.

A atual existência humana se passa entre o tédio e o medo. Na busca da felicidade que está em escolher a segurança ou a liberdade.

Quando tu te acostumas a receber facadas, alfinetadas passam despercebidas.

O Australopithecus achou uma ideia brilhante descer das árvores pra tentar a vida. Impressionante é que o Homo Sapiens AINDA ache brilhante.

Come caviar e arrota arroz com ovo.

O mundo se torna melhor depois de momentos que você sente um profundo desprezo por tudo o que existe.

Os defeitos e vícios alheios são sempre mais nocivos e reprováveis que os meus. Sou príncipe, sou ideal e vou pro Céu.

Cansei de ser pós-moderno, agora serei eterno.

Eu seguir a carreira de professor mesmo sendo gago é só uma das provas irrefutáveis do meu monumental egoísmo e descaso com os outros.

Felicidade é questão de perspectiva. Estômago cheio e intestino vazio. Bolso cheio e saco vazio. O contrário é infelicidade.

Não aceito discutir nada sério se não for com piadas.

Meu cérebro seria muito mais feliz em uma zebra, onde poderia correr veloz fugindo de leões nas savanas, invés de preso nesta ovelha humana.

As pessoas tem muitos níveis de profundidade. O chato é que sempre (re/a)presentam o nível mais sujo...

Gênio mesmo foi Rimbaud, que fugiu a tempo, antes de perceberem a sua mediocridade. Reconheceram apenas as próprias mediocridades.

Aprendo coisas novas todos os dias. Esqueço-as no instante seguinte.

É tudo tão relativo... entre os Neanderthais, por exemplo, tu serias considerado um gentleman.

Pessoas gentis demais me desarmam. Não posso nem ser eu mesmo com elas, me forço a ser simpático.

De maneira geral, homens defendem ideias, mulheres defendem pessoas. A sociedade ainda ser patriarcal é um atestado de quão degenerada ela é.

Dinheiro? Sou homem de princípios e não posso ser comprado! Para o que quiser, basta uma voz manhosa e um decote.

O spleen de Baudelaire era em Paris. O meu spleen é numa cidadezinha mequetrefe da borda meridional do mundo. Justo isso?

As minhas piores desgraças vieram quando pessoas me disseram que eu era inteligente e acreditei nelas.

Se até a merda tem quem goste (como besouros, veterinários e arqueólogos), o que dirá de você? Alegre-se e tenha esperança!

Porsche na garagem e só sai de casa de ônibus para não passar vergonha.

Dar esmolas é tão vão quanto escovar os dentes. Haverá miséria e cárie de qualquer forma.

Nietzsche dizia que só somos realmente verdadeiros no amor. Porra, Nietzsche não sacava nada sobre o amor mesmo!

As pessoas fazem comparações. Por isso são tão infelizes.

O ignorante de si mesmo possui muitos dos defeitos que repudia. Os nega e soma mais um sem nem saber: hipocrisia.

Criar um aforismo ou poema é como ejaculação precoce: suga as energias, mas a sua breviedade não satisfaz ninguém.

Maior merda ser um Raskólnikov sem nem ao menos ter matado alguém...

Sabe quantos com sub-alimentação para que tu te delicies neste banquete? Parabéns a todos cristãos solidários e revolucionários humanistas.

E eu, que tinha tudo para ser um daqueles gênios excêntricos.

Em árvore de pombo, papagaio é rei.

É entre as vítimas sociais que nascem os heróis da contracultura?

As pessoas amam mais o que lhes parece impossível. E assim fica fácil explicar o porquê do adultério, do choro, da poesia e da religião.

O estranho é que o proletário, só de inveja, pense que é burguês.

A diferença entre décadent e übermensch é tão somente a metodologia de avaliação. Eu alterno entre os dois polos.

Às vezes me sei ínfimo. O que me conforta são os meus iguais: a espécie humana.

O tímido é um egocêntrico paranóico. Ele sempre se coloca como o centro do mundo observável.

Eu vejo círculos em todos os lugares: nas conversas, na ciência, na política, nos comportamentos e até mesmo nas chaves que abrem as portas.

É lamentável que um imbecil tenha a única opinião disponível sobre um assunto.

Mais chato que o perfeccionismo só mesmo a perfeição.

Os escritores só se tornam escritores por falta de auto-crítica.

O imperdoável para quem se julga um gênio é ter sua suposta inteligência menosprezada.

Planejar o futuro por retrospectiva é ter a certeza de estar tecendo planos retrógrados.

Analfabeto funcional que lê grandes autores como Nietzsche, Dostoievski, Shakespeare e Zibia Gasparetto.

Não vi, vivi e não venci. Em Roma eu não conseguiria viver com essa vergonha.

Só o verdadeiro loser tem a real consciência de ser loser. Ele sabe que nenhuma loseridade é universal.

Sinto uma vaga saudade do que nunca existiu.

Dissabor vira indiferença. Frustração se transforma em raiva. Não à toa desprezo e ódio são sentimentos tão comuns atualmente.

Os poetas seriam mais felizes se destruíssem matéria ao invés de ideias e sentimentos. Seriam bárbaros. Mas a felicidade tem seu preço.

Não só em Pernambuco, mas em qualquer lugar do mundo, ou há de ser cavalgante ou há de ser cavalgado.

Fique com sua opinião minúscula enquanto eu fico com meu posicionamento ridículo. E regozijaremos.

Os problemas do mundo te parecem menos problemáticos quando comparados com teu espírito que se debate furioso.

Quão grande é a alma para poder conter, ao mesmo tempo, a imensidade do sonho e a imensidade da desilusão?

No palco da vida real interpreto Hamlet. Numa versão pastiche pós-moderna.

Se fôssemos todos perseguidos por um crocodilo que acompanhasse o horrível som do tic-tac perderíamos menos vida com superficialidades.

A genialidade de nossos dias está em transformar o banal em imprescindível.

A partir do instante em começa a se pensar como intelectual, o miserável inexplicavelmente se torna blasé.

Em nome da delícia do tédio eu procrastino até mesmo os meus prazeres.

A convivência humana pacífica tolera só até certo nível de sarcasmo.

Nada de sonhos ou utopia. Precisamos de obsessões para viver. Somente quando beiramos a psicopatia podemos almejar uma existência feliz.

Os lobos se transmutam em cordeiros graças a insistência do fracasso.

A instrospecção é a última utopia para o Homem sem utopia.

Filmes Vistos em 2010

Modelo:
Tìtulo no Brasil (Título original)[Observações]

1. Efeito Borboleta (The Butterfly Effect)
2. Sempre ao seu Lado (Hachiko - A Dog's Story)
3. Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds)
4. Atividade Paranormal (Paranormal Activity)
5. Wall-E (idem)
6. The Spirit (idem)
7. Sete Anos no Tibet (Seven Years in Tibet)
8. Arn – O Cavaleiro Templário (Arn – Tempelriddaren)
9. Death Trance – O Samurai do Apocalipse (Death Trance)
10. Minha Super Ex-Namorada (My Super Ex-Girlfriend)
11. Pompeia – A Fúria dos Deuses (Pompei, ieri, oggi, domani)
12. 2012 (idem)
13. Duna (Dune)
14. Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (Sweeney Todd - The Demon Barber of Fleet Street)
15. Na Natureza Selvagem (Into the Wild)
16. O Grande Assalto (The Real McCoy)
17. Corrida Mortal (Death Race)
18. As Duas Faces da Lei (Righteous Kill)
19. A Máscara do Zorro (The Mask of Zorro)
20. Dragon Ball Evolution (idem)
21. Superman – O Retorno (Superman – The Return)
22. Piratas do Vale do Silício (Pirates of Silicon Valley)
23. Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness)
24. Outlander – Guerreiro vs Predador (Outlander)
25. Carruagens de Fogo (Chariots of Fire)
26. Os Seus, os Meus, os Nossos (Yours, Mine and Ours)
27. Quarteto Fantástico (Fantastic Four)
28. O Incrível Exército de Brancaleone (L’Armata Brancaleone)
29. Hair (idem)
30. Avatar (idem)
31. Amor em Fuga (L'Amour en Fuite)
32. Zumbilândia (Zombieland)
33. Batalha Real (Batoru Rowaiaru)
34. O Chamado de Cthulhu (Call of Cthulhu) [2005]
35. Necronomicon – O Livro Proibido dos Mortos (Necronomicon – Book of Dead) [1993]
36. Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou)
37. Stardust – O Mistério da Estrela (Stardust)
38. Mad Max: Além da Cúpula do Trovão (Mad Max - Beyond Thunderdome)
39. Oldboy (Oldeuboi)
40. Cães de Aluguel (Reservoir Dogs)
41. Percy Jackson e o Ladrão de Raios (Percy Jackson & the Olympians: The Lightning Thief)
42. Pulp Fiction – Tempos de Violência (Pulp Fiction)
43. A Onda (Die Welle)
44. Vida e Morte de uma Gangue Pornô (Zivot i Smrt Porno Bande)
45. Samurai Princess (Samurai Purinsesu: Gedō Hime)
46. Os Santos Sujos (Los Santos Sucios)
47. Watchmen (idem)
48. O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus (The Imaginarium of Doctor Parnassus)
49. Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado [BR]
50. Os Cisnes Feios (Gadkie Lebedi)
51. Eu Vendo os Mortos (I Sell the Dead)
52. Big Stan – Arrebentando na Prisão (Big Stan)
53. Tá Todo Mundo Louco (Rat Race)
54. O Grande Dragão Branco (Bloodsport)
55. Forrest Gump – O Contador de Histórias (Forrest Gump)
56. Minha Vida em Cor-de-rosa (Ma Vie en Rose)
57. Betty Blue (37°2 le Matin)
58. Honra e Coragem (The Four Feathers)
59. Irmandade de Sangue (The Brotherhood)
60. Clube da Luta (Fight Club)
61. O Grande Ditador (The Great Dictator)
62. Tempos Modernos (Modern Times)
63. Fúria de Titãs (Clash of the Titans) [1981]
64. O Último Imperador (The Last Emperor)
65. Por Água Abaixo (Flushed Away)
66. Os Intocáveis (The Untouchables)
67. O Homem com a Câmera (Chelovek s kino apparatom)
68. Salve o Cinema (Salaam Cinema)
69. Jesus Cristo Superstar (Jesus Christ Superstar)
70. 8 (idem)
71. A Origem (Inception)
72. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel [VE] (The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring)
73. O Senhor dos Anéis: As Duas Torres [VE] (The Lord of the Rings: The Two Towers)
74. Shinobi – A Batalha (Shinobi – Heart Under Blade) (Kouga Ninpouchou Basilisk)

29 de novembro de 2010

Profana Tragédia

Tive um sonho, daqueles de autores medievais, descritores de quiméricos pesadelos inspirados por algum súcubo. Mas tive meu sonho anacrônico no século XXI, sem Virgílio como guia.

No meu sonho eu não tinha boca nem braços para me expressar ou alcançar o que quer que fosse. Meus pés descalços, além, ansiavam por uma marcha incontrolável, contínua e retilínea. E enquanto eu caminhava, dos meus bolsos rasgados caíam, ao mesmo tempo, versículos do Novo Testamento e aforismos de Nietzsche, os quais crianças de olhos puros recolhiam e levavam à boca, tornando-se imundas.

Falar era impossível, mas eu via e ouvia tudo com perfeição. E sentia o fedor nauseabundo de corrupção vindo de seres esguios e curvados sentados em tronos extravagantes no alto de gigantescos pedestais inalcançáveis.

Mais adiante, na esquina, vivos sem vida, pessoas bem vestidas e de olhos opacos em algaravia convidavam todos a trocar suas tristes vidas por outra depois dessa. Uma delas me segurou pelos ombros e implorou a minha submissão. Parecia confortável, mas soava vazio e irresponsável. Era uma aposta que não valia a minha anulação. Antes que eu fosse ela chorou, sinceramente chorou por mim. E eu senti inveja, pois nunca poderei chorar por mim.

Próximos dali, diversos corpos nus, sujos e feridos jaziam no chão. Assustei quando aproximei e percebi que não eram cadáveres. Tinham os olhos abertos, tão abertos que não havia pálpebras. Viam tudo. Sempre. A todo momento. Estavam sujos porque suas roupas apodreceram e não sentiam pudor ou desejo de renovação. Insetos rondavam suas feridas abertas. Estavam acostumados à dor. Permaneciam imóveis porque nada lhes interessava. Não se importavam mais com nada e ninguém se importava com eles. Até mesmo os pregadores da esquina haviam desistido deles. Tão sábios e tão inúteis!

Senti vontade de me juntar a eles.

Mas caminhei, movimento eterno. Fui longe e por onde eu passava a paisagem mais comum era a de seres decapitados andando para lá e para cá, entrechocando-se e usando ferramentas sem precisão: martelavam o ar, serravam braços, varriam pássaros e colhiam pedras em árvores. Depois faziam fila para receber esmolas. E pareciam felizes em trocar suas vidas por um lugar onde gastar esses pedaços de papel colorido.

Segui andando, cobrindo milhares de milhas. E passei por deserto, longo, vasto, abrasador, quase infindável deserto. Onde não havia nem água, nem flor, nem alma, nem sol, nem duna ou areia. Havia somente uma cadeira, pequena e vazia na amplidão. Nela eu podia me sentar e esperar. Esperar pelo Tempo. Esperar por Ninguém.

Continuei andando, meus pés me conduziam a lugar nenhum, sempre em frente. E quando finalmente encontrei pessoas novamente, encontrei aos milhões, todas reunidas até onde a vista alcançava e além. E todas realizavam movimentos estranhos, todas ao mesmo tempo: ora botavam a mão na abóbora que ocupava o lugar da cabeça acima dos ombros, ora levavam a mão aos genitais, ora no dedo mindinho do pé, ora pulavam num pé só, ora piavam "cucurucu". Prestavam atenção em algo no centro da multidão. Vi que obedeciam ordens que se propagavam de criatura em criatura pela imitação. Ordens - ordens de uma caixa.

E participei de banquetes onde regalavam-se seres apáticos. Em uma mesa participavam imbecilizados farrapos humanos que sorriam sorrisos sem dentes enquanto dividiam grãos duros de feijão. Na outra mesa participavam hipócritas seres de porcelana que lamentavam a miséria dos pobres enquanto comiam diamantes. Vomitei após as duas refeições.

Andei mais, andei tanto que perdi a memória do quanto andei do meu nascimento até aquele momento. E ao largo do caminho havia um imenso depósito de lixo, uma sucata de ideias não aproveitadas, de ações desperdiçadas, de intenções sem auxílio. Quantos gênios das artes, das ciências e das paixões lá jogados fora!

Passei por fanáticos que gritavam "Aleluia!" como palavra de ordem. Passei por fanáticos que gritavam "Verdade!" como palavra de ordem. Passei por fanáticos que gritavam "Gol!" como palavra de ordem. Passei por campos onde planavam, feridas, suaves almas de papel. Passei por largas ruas rodeadas de edifícios contruídos com tijolos de solidão. Passei por florestas escuras e lamaçais. Passei por grandes arcos vaginais que gotejavam. Passei por oceanos: de vozes, de lágrimas, de álcool, de merda, de moedas, de suores, de saliva, de promessas, de mentiras.

Quando então aportei e meus pés pararam, estava em frente a um espelho d'água de lâminas afiadas que refletiam o meu rosto cansado e cortado pela passagem da História. Me deixei cair e afundar pouco a pouco até me afogar no sangue de todas as gerações humanas que vertia.

E não pude chorar quando não acordei.

23 de outubro de 2010

Navio Moderno e Naufrágio Pós-Moderno

Seguros em navio bem construído, sólido, único, iluminado e organizado partiam rumo ao horizonte, até onde a vista alcançava, para a Ilha Prometida, Atlântida, a Nova República. Onde as leis fossem justas, onde os Homens fossem fraternos, livres e iguais, onde a mentira não escondesse a verdade, onde a civilização reinasse, à frente, sempre à frente. Para a Utopia.

Num navio sem remos nem velas, ondulando ao sabor do acaso da maré. Com cálculos precisos ditando o caminho, verdades obtidas através de perfeitos e complicados instrumentos técnicos. De observação celeste, de análise das ondas, de reparação do madeirame, de governança dos tripulantes e passageiros, situação sob controle.

Abatidos pela esperança, aguardavam a chegada sempre adiada. E animavam-se diante dos sinais encontradas pelos esclarecidos: uma nova corrente marinha que poderia empurrar até a ilha; uma nova espécie de peixe que não haviam visto antes; uma nova constelação surgida no céu sugeria que já tinham navegado o bastante; um novo sopro de ar; uma nova posição do sol; uma nova estação. Novidades, precisavam de novidades, mais novidades, sempre novidades, para que a espera fosse menos dolorosa e vislumbrassem ainda a possibilidade da chegada.

Mas a espera era sempre demasiada. Sentiam saudade do tempo em que seus pés tocavam a terra e a areia passava entre seus dedos. De caminhar até onde quisessem. No navio estavam presos, cada um em sua cela. Quando no tombadilho, o choque entre eles era sempre inevitável, pois gente demais ocupava espaço de menos. E criavam-se grupos, guerras, ameaças, desconfianças, e nova reclusão em suas celas. A interferência dos comandantes tinha que ser imediata, forte e preventiva, ou o controle ameaçava romper e as coisas poderiam acabar realmente mal. A ameaça de um fratricídio era constante.

Em seus íntimos, todos morriam de tédio, angústia, ansiedade e frustração. E nem a segurança causada pela solidez do barco sempre avançando era capaz de preencher o vazio que sentiam e não suportavam. Os marujos apodreciam de escorbuto e as donzelas e os estóicos mergulhavam para sempre no negror do mar.

Deixaram de querer a Utopia da Esperança. Começaram a desejar o que não tinham: liberdade. Liberdade para sair se quisessem, liberdade de não aderir, liberdade da responsabilidade sufocante, liberdade para gastar a vida onde quisessem, liberdade de ter os gostos, e roupas, e desejos que mais lhe atraíssem. Não uma liberdade baseada na organização de todos, compartilhada, mas uma liberdade da tolerância, de aceitação, não agressiva e não controladora. Mais liberdade, ao preço que fosse.

E foi aí que a solidez da nova Arca da Humanidade falhou. O improvável e irracional aconteceram: o navio inteiro submergiu, levando tudo o que representava. E quando as águas o começaram a sugar, subiam à superfície as contrapartes do navio. E as pessoas. Acostumadas a viver em grupos de cooperação, estranhou-se suas atitudes, a morte estava bem próxima e provável: era cada um por si!

Mastros, madeiras, caixas, camas, pranchas e destroços em geral estavam espalhados a quilômetros de distância depois que o navio havia se espatifado e se desintegrado em pequenos pedaços saudosos. Em cada um destes destroços alguém se agarrava avidamente protegendo a sua própria vida, numa atitude pouco condizente com o tédio e o desânimo que demonstravam no navio. Sob o perigo iminente da morte, preocupavam-se em viver de novo, e dispostos a aproveitar o mais que pudessem dessa vez, já que não poderiam prever de modo algum quando as águas tragar-lhes-iam outra vez.

Desesperados remavam, nadavam e davam braçadas heróicas. E desesperar é ainda não ter mais esperanças. Suas únicas vidas eram destroços pálidos do que havia sido uma sólida nau tempos atrás. E se agarravam a eles como nunca. Pequenos prazeres podiam ser comprados, como um destroço maior, ou mais arredondado, ou mais confortável, ou melhor pintado e mais bonito. Remos, espelhos, chapéus, dados e moedas estavam entre os objetos mais populares que resgatavam do naufrágio. Nada de realmente útil, só algo de que desejavam para passar seus últimos instantes de vida da forma mais agradável que conseguissem. Mas afinal, numa situação como aquela? O que poderia ser realmente útil? Que não um enfeite que a tornasse mais bela, um jogo que matasse o tempo, uma ferramenta ou um objeto que os fizessem lembrar de outros tempos em que sua memória rasa os fazia supor que haviam sido melhores.

Sem chão sob os pés sentiam-se perdidos. Nada mais os guiava a não ser o próprio íntimo. Quando solitários, partilhavam opiniões, não espaços. Impotentes para mudar a situação diante das circunstâncias resignavam-se a preocupar-se somente consigo mesmos, que era até onde tinham poder e liberdade de ir. Haviam perdido a solidez do navio e dos pés no chão, mas tinham ganho a liberdade e o desejo. Tornaram-se novamente selvagens inocentes. Se estavam mais ou menos felizes não era a questão. Eram situações diferentes, e isto é tudo.

17 de agosto de 2010

Passagem

Comboio que passa.
Trem que parte.
Navio que apita.
Outono que chega
e cai do alto das árvores.

Enquanto tu ficas, imóvel e melancólica,
à espera.
Até que eu, perdido, te encontre enfim.
E possamos embarcar juntos
num vagão sem destino
com janelas para o mundo.

13 de julho de 2010

Que fizeste dela?

"A tua vida, que fizeste dela?"
Indaga-me o vento do poema do poeta
na melancólica tarde do feriado vazio,
no desaguar do rio do tempo,
apavorante sensação de estio.

Derramei-a sobre páginas que esfarelam-se, e
troquei meus dias de sol por
retângulos de papel que não me pertencem.

Profusão de ações tão mecânicas quanto necessárias:
ida ao banco e ao supermercado,
festas em ambientes climatizados com o sem-sentido,
horas sentado ouvindo zurros para aprender a ser espantalho.
Tantas cerimônias do desamor fado!

Voluntário abandono de mim,
revolto-me às vezes às vésperas do caminho
para retomar o curso das águas

E devolver-me o direito
ao delicioso tédio
de observar a vida que vai embora
admirando, através do vidro da janela que embaça,
a chuva que cai lá fora.

5 de junho de 2010

Microrresumos

Dom Quixote: velho louco e gordo burro apanham o tempo todo enquanto procuram coisa nenhuma até o velho doido ir pra cova.

Odisséia: homem acaba a guerra, vai de ilha em ilha pegando mulher enquanto a corna espera em casa no meio dum monte de marmanjo babando em cima.

Ilíada: malandrão rouba a mulher boazuda de outro. Negadinha amiga do cornão cai de pau na casa do malandrão. Biba fresca se recusa a lutar. Morte, morte, morte. Parceiro do fresco morre. O fresco mata o irmão do malandrão. Jogos. Choro. Fim.

Hamlet: riquinho vê papai morto aparecer. Fica piradão e fala sozinho sem parar. Mata todo mundo no final e depois morre.

Romeu e Julieta: casalzinho vinte se apaixona. Mamãe não deixa, papai não quer. Brigas. Melação sem fim. Um finge que se mata. O outro acredita e se mata mesmo. O outro se mata junto.

Otelo: legítimo FdP faz intriga, que faz negão sem noção matar a mulhar por causa de um lencinho e de monstro de olhos verdes (ou qualquer coisa assim...).

Sherlock Holmes (qualquer livro): cara viciado e muito espertalhão enrola o tempo inteiro e no final junta pistas que só ele viu para tirar uma conclusão que só ele poderia tirar.

Édipo Rei: homem mata o pai, dá uns pegas na mãe, fura os olhos e foge. A mãe se mata.

Medéia: homem troca a esposa por ninfetinha rica. Pra se vingar, a corna mata os filhos.

Crime e Castigo: pobretão racha o crânio de velha porca capitalista e da irmã dela. As centenas de páginas seguintes fica entre "conto pra polícia, não conto, conto, não conto, conto, não conto..."

O Nome da Rosa: padrecos safados se matam pra manter segredinho, hihihi.

Os Sofrimentos do Jovem Werther: menino emo se mata após ser rejeitado pela boazuda casada em quem deu em cima o livro inteiro.

Vinte Mil Léguas Submarinas: eco-terrorista pesca três homens que, pra não morrerem de tédio dentro do submarino, contam peixinhos.

25 de março de 2010

Retorno


A alvorada me chama preguiçoso para o mundo. Inicia o perene combate. Morte ou vida. A escolher. Ou ambas. Ou nenhuma.

Vejo as cores, mas não enxergo as formas. Mas o Sol me dá forças: do ódio ou do desprezo. E assim blasfemo contra Deus, vilipendio a raça humana, não me eximo, não me poupo, chuto mendigos, debocho dos humildes, arremesso troféus nos narizes dos poderosos, gargalho dos vãos esforços dos sonhadores, firo com sarcasmos inflamados, roubos dos ricos, e também dos pobres, devoro o amor às bocadas apenas para despejá-lo na pia, destruo o mundo para reconstruí-lo com areia na beira da praia que a maré carrega. Ilusões.

Minto, roubo, mato, cobiço, invejo, bato, torturo, deturpo, profano, ironizo, descreio, ojerizo, ignoro, xingo, guerreio, vitupero, odeio, desprezo. Nada disso. Me consagro à indignidade e ao mal para ser superior à podridão que reina em campos de lavanda. Muito do que quis não fiz. Muito do que fiz não quis.

Mas a noite chega, sempre chega, e o meu corpo esfria. A cabeça que vagava em velocidade vertiginosa cessa a inquietação do espírito e o logos atinge a linearidade morna do vulgar, decai das alturas celestes e emerge dos pélagos abissais, pairando à meia tona. Terrestre. Comum. Pneuma não é mais que sopro. Partilho, desde então, da banalidade de todos os seres e, como eles, me sinto só. Só num mar de miríades de igualdade. Espero por algo que não sei, ou que sei mas não ouso confessar. Sinto falta do calor do dia e de uma outra voz em meu ouvido.

Até a próxima alvorada. Que me chama preguiçoso para o mundo. Inicia o perene combate. Morte ou vida. A escolher. Ou ambas. Ou nenhuma.

4 de janeiro de 2010

Livros Lidos em 2009

Modelo:
Título do Livro (Nome do Autor)
[Definição, Editora, número de páginas, complementos]

Livros lidos em 2009:

1- O Primeiro Homem (Albert Camus)
[Romance, Nova Fronteira, 311 páginas]

2- Júlio César (William Shakespeare)
[Teatro, L&PM, 142 páginas]

3- A Lição e As Cadeiras (Eugène Ionesco)
[Teatro, Peixoto Neto, 186 páginas]

4- Quadras ao Gosto Popular (Fernando Pessoa)
[Poesia, L&PM, 116 páginas]

5- Cancioneiro (Fernando Pessoa)
[Poesia, L&PM, 183 páginas]

6- Cem Sonetos de Amor (Pablo Neruda)
[Poesia, L&PM, 122 páginas]

7- José & Outros (Carlos Drummond de Andrade)
[Poesia, Best Seller, 175 páginas]

8- Molloy (Samuel Beckett)
[Romance, Globo, 259 páginas]

9- Poemas de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
[Poesia, L&PM, 144 páginas]

10- Mensagem (Fernando Pessoa)
[Poesia, L&PM, 112 páginas]

11- O Mito de Sísifo (Albert Camus)
[Filosofia, Guanabara, 162 páginas]

12- Fatos e Mitos do Antigo Egito (Margaret Marchiori Bakos)
[História, EDIPUCRS, 187 páginas]

13- Odes de Ricardo Reis (Fernando Pessoa)
[Poesia, L&PM, 184 páginas]

14- Cai a Noite Sobre Palomas (Juremir Machado da Silva)
[Romance, Sulina, 262 páginas]

15- Além do Bem e do Mal (Friedrich Nietzsche)
[Filosofia, L&PM, 256 páginas]

16- O Pensamento do Fim do Século (Diversos, org: Juremir Machado da Silva)
[Entrevista/Cultura, L&PM, 231 páginas]

17- Pequenos Poemas em Prosa (Charles Baudelaire)
[Poesia, Record, 287 páginas, bilíngue francês-português]

18- Últimos Poemas (Pablo Neruda)
[Poesia, L&PM, 144 páginas, bilíngüe espanhol/português]

19- O Despovoador; Mal Visto Mal Dito (Samuel Beckett)
[Contos, Martins Fontes, 105 páginas]

20- Stroessner: Anatomia de uma Ditadura (Alberto Carbone e Walter Sotomayor)
[História, Paralelo 15, 164 páginas]

21- No Que Acredito (Bertrand Russel)
[Filosofia, L&PM, 112 páginas]

22- Monsieur Teste (Paul Valéry)
[Ensaio, Ática, 166 páginas]

23- Broquéis; Faróis (Cruz e Souza)
[Poesia, Martin Claret, 167 páginas]

24- Capítulo dos Chapéus; O Caso da Vara; Pai Contra Mãe (Machado de Assis)
[Contos, Artes e Ofícios, 85 páginas]