29 de novembro de 2010

Profana Tragédia

Tive um sonho, daqueles de autores medievais, descritores de quiméricos pesadelos inspirados por algum súcubo. Mas tive meu sonho anacrônico no século XXI, sem Virgílio como guia.

No meu sonho eu não tinha boca nem braços para me expressar ou alcançar o que quer que fosse. Meus pés descalços, além, ansiavam por uma marcha incontrolável, contínua e retilínea. E enquanto eu caminhava, dos meus bolsos rasgados caíam, ao mesmo tempo, versículos do Novo Testamento e aforismos de Nietzsche, os quais crianças de olhos puros recolhiam e levavam à boca, tornando-se imundas.

Falar era impossível, mas eu via e ouvia tudo com perfeição. E sentia o fedor nauseabundo de corrupção vindo de seres esguios e curvados sentados em tronos extravagantes no alto de gigantescos pedestais inalcançáveis.

Mais adiante, na esquina, vivos sem vida, pessoas bem vestidas e de olhos opacos em algaravia convidavam todos a trocar suas tristes vidas por outra depois dessa. Uma delas me segurou pelos ombros e implorou a minha submissão. Parecia confortável, mas soava vazio e irresponsável. Era uma aposta que não valia a minha anulação. Antes que eu fosse ela chorou, sinceramente chorou por mim. E eu senti inveja, pois nunca poderei chorar por mim.

Próximos dali, diversos corpos nus, sujos e feridos jaziam no chão. Assustei quando aproximei e percebi que não eram cadáveres. Tinham os olhos abertos, tão abertos que não havia pálpebras. Viam tudo. Sempre. A todo momento. Estavam sujos porque suas roupas apodreceram e não sentiam pudor ou desejo de renovação. Insetos rondavam suas feridas abertas. Estavam acostumados à dor. Permaneciam imóveis porque nada lhes interessava. Não se importavam mais com nada e ninguém se importava com eles. Até mesmo os pregadores da esquina haviam desistido deles. Tão sábios e tão inúteis!

Senti vontade de me juntar a eles.

Mas caminhei, movimento eterno. Fui longe e por onde eu passava a paisagem mais comum era a de seres decapitados andando para lá e para cá, entrechocando-se e usando ferramentas sem precisão: martelavam o ar, serravam braços, varriam pássaros e colhiam pedras em árvores. Depois faziam fila para receber esmolas. E pareciam felizes em trocar suas vidas por um lugar onde gastar esses pedaços de papel colorido.

Segui andando, cobrindo milhares de milhas. E passei por deserto, longo, vasto, abrasador, quase infindável deserto. Onde não havia nem água, nem flor, nem alma, nem sol, nem duna ou areia. Havia somente uma cadeira, pequena e vazia na amplidão. Nela eu podia me sentar e esperar. Esperar pelo Tempo. Esperar por Ninguém.

Continuei andando, meus pés me conduziam a lugar nenhum, sempre em frente. E quando finalmente encontrei pessoas novamente, encontrei aos milhões, todas reunidas até onde a vista alcançava e além. E todas realizavam movimentos estranhos, todas ao mesmo tempo: ora botavam a mão na abóbora que ocupava o lugar da cabeça acima dos ombros, ora levavam a mão aos genitais, ora no dedo mindinho do pé, ora pulavam num pé só, ora piavam "cucurucu". Prestavam atenção em algo no centro da multidão. Vi que obedeciam ordens que se propagavam de criatura em criatura pela imitação. Ordens - ordens de uma caixa.

E participei de banquetes onde regalavam-se seres apáticos. Em uma mesa participavam imbecilizados farrapos humanos que sorriam sorrisos sem dentes enquanto dividiam grãos duros de feijão. Na outra mesa participavam hipócritas seres de porcelana que lamentavam a miséria dos pobres enquanto comiam diamantes. Vomitei após as duas refeições.

Andei mais, andei tanto que perdi a memória do quanto andei do meu nascimento até aquele momento. E ao largo do caminho havia um imenso depósito de lixo, uma sucata de ideias não aproveitadas, de ações desperdiçadas, de intenções sem auxílio. Quantos gênios das artes, das ciências e das paixões lá jogados fora!

Passei por fanáticos que gritavam "Aleluia!" como palavra de ordem. Passei por fanáticos que gritavam "Verdade!" como palavra de ordem. Passei por fanáticos que gritavam "Gol!" como palavra de ordem. Passei por campos onde planavam, feridas, suaves almas de papel. Passei por largas ruas rodeadas de edifícios contruídos com tijolos de solidão. Passei por florestas escuras e lamaçais. Passei por grandes arcos vaginais que gotejavam. Passei por oceanos: de vozes, de lágrimas, de álcool, de merda, de moedas, de suores, de saliva, de promessas, de mentiras.

Quando então aportei e meus pés pararam, estava em frente a um espelho d'água de lâminas afiadas que refletiam o meu rosto cansado e cortado pela passagem da História. Me deixei cair e afundar pouco a pouco até me afogar no sangue de todas as gerações humanas que vertia.

E não pude chorar quando não acordei.