24 de maio de 2011

Cerâmica

Avanço sem busca
Em campos de folhagens laminadas
Onde passeio as mãos entre o capim distraído.
E do meu suorsangue fertilizado
Florescem papoulas e crisântemos.
Sem mariposa, alma alada.

Sem inseto, pneuma ou psiquê que voeje contente por sobre a colheita onde os pássaros têm o seu simpósio.
Sem cereal, azeitona ou vinho a armazenar a ânfora decorada por Helena.
Ânfora sem alma para preencher.
Estética apagada na fluidez do rio onde foi abandonada para os arqueólogos do futuro.
E rio, rio, rio...
Até que reste somente a argila dura.

Recipiente preenchido de memórias,
Que são nada.
Vazio.
Mas ainda assim tapado.
Meu barrocorpo é tudo que sou.
Mais não há.
Ou há.
Loucuras de artistas esquecidos que foram e já não são mais nem serão outra vez.

Sou todo matéria.
Sou todo certeza.

Cerâmica mil vezes estilhaçada por crianças inconsequentes
Correndo, ávidas pelo jogo.
Copiosamente reconstruído dos cacos
É preciso que habitue ao molde das delicadas mãos da ceramista enquanto o mundo gira impulsionado por ela.

Maldita

Assim, ao longe, és apenas uma ideia,
uma lembrança do futuro que já vivemos
ou viveremos.

Assim, ao longe, és maldita.
Maldita por não mais me reconhecer em meus olhos
mas me fazer reconhecer nos teus.
Maldita por estranhar o que se destrói e reconstrói em meu peito.
Maldita por ter de refazer os meus planos.
Deliciosamente maldita.

Assim, ao longe, és uma imagem
pronta para me aceitar também e aquém do teu corpo
n'alma.
E enquanto tocam os sinos do mundo,
extasiado entro em tua vida.

9 de maio de 2011

5 Livros Favoritos

A lista que segue foi originalmente elaborada para ser publicada no Fórum Valinor, no tópico "Cinco Livros Favoritos com Kainof".

---------------------------
Os livros foram escolhidos por autores. Poderia pegar qualquer livro de qualquer dos autores a seguir arrolados e seriam todas boas escolhas. Seleciono os seguintes por serem os meus preferidos ou por serem os mais marcantes na minha vida. O resultado foi uma lista até bem variada em estilos, embora semelhantes no assunto: ensaio filosófico, romance, dramaturgia, poesia e epopéia. Alguns bem clássicos e outros quase desconhecidos, apesar da fama e aclamação no meio literário, como são os casos dos agraciados com o Nobel de Literatura, Beckett e Camus. Espero que se inspirem e interessem por essas obras.

O Mito de Sísifo – Albert Camus


“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”, assim começa o ensaio “O Mito de Sísifo” do franco-argelino Albert Camus. Um livro destinado a lançar questionamentos antigos sobre modos contemporâneos de viver o mundo. Um livro que trata já dos principais motes de Camus: o absurdo e a revolta.

Na mitologia grega, Sísifo, após enganar os deuses, é condenado no pós-vida ao castigo de rolar um imenso rochedo montanha acima e, quando prestes a concluir a tarefa e alcançar o topo, o rochedo despencava morro abaixo, obrigando Sísifo a recomeçar a tarefa, e assim infinitamente. Sísifo é o símbolo do homem absurdo, o homem atual, ocupado em tarefas inúteis e desgastantes para nada, para o fracasso, para após isso recomeçar tudo outra vez. “No topo é possível imaginar Sísifo feliz”. O objetivo não importa só a tarefa, a revolta diante do absurdo da existência. O niilismo de Camus é positivo, no sentido em que dispõe a invalidade de tudo não ser motivo para a apatia. O absurdo conduz ao cansaço, mas este inaugura a revolta do Homem que se vê diante de um mundo ausente onde somente a sua ação sobre ele pode lhe dar uma significação.

Esse foi o livro que mais influência teve na minha formação recente. Marcou-me profundamente e foi responsável por uma secessão de epifanias. Talvez pelo momento em que eu vivia, esse era o livro que eu estava esperando para ler naquele momento. Pois livros, sobretudo, fazem-se bons não só por autores, mas por localidades, por leitores e por momentos.

Malone Morre – Samuel Beckett

Malone é um talvez homem talvez velho talvez doente talvez ainda vivo talvez deitado em uma talvez cama talvez internado em um talvez hospital. Não é possível determinar nada com exatidão em toda a narrativa. Aparentemente, Malone é um idoso moribundo de cerca de 90 anos, incapaz de

se levantar da cama mais do que alguns centímetros, que narra com enfadonha descrição os meios pelo qual se utiliza para gastar o tempo de viver. Prosseguir, apenas isso, porque, por vezes, continuar, em simplesmente continuar é que consiste a verdadeira superação. Em um mundo privado de sentido, banal, irracional, Malone torna comum o absurdo da vida humana e naturaliza a decadência.

Para matar o tempo até a morte, Malone cria teorias, inventa histórias, faz rememorações (não importa se precisas ou verdadeiras), sente e vigia o próprio corpo (ainda que seja incapaz de manter o controle total sobre ele). “Sim, tenho meus pequenos passatempos”, repete o personagem título. Até que venha o inevitável é preciso continuar.

Uma linguagem coloquial, com interrupções de ideias, frases incompletas, parágrafos por vezes extensos demais com pluralidade de assuntos nem tão complementares. A prosa de Beckett é inusual e transforma o tédio em assunto de interesse. Suas tragédias não são boas nem más nem chocantes, são tornadas apenas cotidianas e naturais, como uma conversa no café-da-manhã.

Hamlet – William Shakespeare


O procrastinador, vingativo, rancoroso e sorumbático príncipe da Dinamarca dá-se com a aparição do fantasma de seu pai morto há pouco onde este lhe conta que foi assassinado traiçoeiramente pelo irmão e esposa. Enfurecido, Hamlet vaga pensativo planejando a vingança enquanto presencia a falsidade dos homicidas. Obcecado pela vingança ao seu modo, não tem atenção para mais nada, a ponto de rejeitar o amor de Ofélia, e nem ao menos demonstrar grande remorso ao saber do suicídio dela após o fato. O desfecho da peça, por fim, é apoteoticamente trágico.

Hamlet, além da intensidade do enredo, tornou-se um clássico, penso, pela história e personagens arquetípicos. Eles são descritos, características que se combinam, mas são estereótipos e generalizantes o suficiente. Assim o hipócrita, ganancioso e sensual Cláudio; o falastrão, empolado e pedante Polônio e o próprio Hamlet, com suas reflexões e titubeios acabam por tornar-se signos de personalidade e comportamento.

Onde há identificação entre leitura e leitor, onde realidade vivida e narrativa sonhada se encontram há a sinergia necessária para transformar palavras em sublime. À parte ser um príncipe dinamarquês (nobre, alto, belo, louro... ), a melancolia existencial evidenciada em seus momentos de solidão por solilóquios dramáticos, a procrastinação, a obsessão cega e o repúdio às convenções hipócritas da corte, fazem de Hamlet uma personagem familiarmente marcante para mim e uma obra sem par na literatura, múltipla em sentidos e interpretações.

Poemas de Álvaro de Campos – Fernando Pessoa


Fernando Pessoa tem um legado literário interessante: além de poemas próprios, escrevia sob nomes de pessoas com personalidade e estilo próprios sendo essas pessoas ele mesmo. Despersonalização da pessoa de Pessoa (entre outros trocadilhos fáceis e infames). Publicou apenas um livro em vida e poesias esparsas em revistas de literatura, entre as quais uma que ele mesmo era editor.

Entre seus heterônimos, o mais vibrante parece ser Álvaro de Campos, poeta inicialmente eufórico, da modernidade, da experimentação juvenil. Logo após melancólico, da modernidade, do tédio, do cansaço e da angústia existencial. É de Álvaro de Campos o poema “Tabacaria”, um dos mais representativos do estilo e do tema tão caro a Pessoa: as sensações, o fracasso, a utopia desenganada, a incerteza, a divisão entre a “vida vivida e a vida sonhada”.

Álvaro de Campos, na opinião do próprio Pessoa, é o mais sentimental dele mesmo. De fato, as poesias de Campos são puro sentimento, em sua maioria introspectivos e pessoais. Nos poemas de Álvaro de Campos a tristeza adquire a beleza suficiente para tornar-se arte.

Odisseia – Homero

A existência de Homero é questionável. Um único homem, rapsodo (“declamador”) e cego, segundo a tradição, autor dos 24 cantos que compõe a obra escrita no século VIII a.C. parece mesmo inverossímil. Fora as diferenças de linguagem e estilo originais nas variadas partes da história e desta com a outra epopeia homérica, a Ilíada. Nada mais natural para algo que foi escrito há milênios e traduzido e transcrito diversas vezes ao longo dos séculos. Um livro que é das maiores obras da humanidade, tanto em beleza, quanto em influência e significação.

Odisseu, após passar dez anos guerreando em Tróia, passa mais dez anos vagando no mar tentando encontrar o caminho de casa, na sua amada ilha de Ítaca. Ao longo do percurso, sofre tantas acidentes e percalços que da tripulação só resta o seu comandante. Odisseu, na viagem, conta com o auxílio da deusa Atena, mas com a inimizade de Poseidon, o deus dos mares, que através de monstros e correntes marítimas desfavoráveis prejudica o marinheiro de encontrar a rota para casa. Enquanto isso, em Ítaca, sua fiel esposa Penelope aguarda pacientemente o retorno do marido, mesmo assediada por pretendentes ao trono e ao casamento com a rainha, que dissipam os bens do rei em festas.

A Odisseia tornou-se símbolo da busca incessante do herói ao seu destino, que para atingi-lo precisa superar grandes desafios e sofrimentos. Símbolo das grandes aventuras heróicas e desesperadas. Se hoje nos soa clichê esse gênero, é devido a esta obra, escrita há milênios, e desde lá introduzida no imaginário ao ponto de pertencer ao âmago da cultura ocidental, inspiradora de um sem número de outras criações artísticas. É uma obra belíssima, com suas descrições sublimes e os epítetos marcantes e poéticos de Homero. Quanto a Odisseu, o solerte Odisseu, um modelo do homem grego, que apesar de suas elevadas qualidades físicas e de distinção nobre, sobressai-se preferencialmente através do intelecto. Foi assim que venceu o ciclope Polifemo, ouviu as sereias sem perecer, enganou a feiticeira Circe e armou a cilada para exterminar os pretendentes.

Em minha vida esta foi das obras mais marcantes, que li aos 15 anos com dificuldades imensas devido ao vocabulário e extensão. O dicionário foi companhia constante ao longo dos dias febris e empolgantes que passei junto ao livro. E de curioso passei a obcecado por mitologia e cultura grega, assunto que me consumiria na adolescência até o início da faculdade.

5 de maio de 2011

Malone Morre

Malone vive. Mas Malone é um ser morrente. Velho, desgastado, destruído,
moribundo, estende sua vida por instantes mais em uma cama de onde não
consegue sair. Sua solidão é completa. Completa porque é total e
completa porque nada lhe falta. Pois Malone ainda tem vida. A vida que se
lhe esvai e que se lhe prolonga. Sim, prolonga, e é só. Só. Prolonga e
se alonga. Sua vida dura. É dura e ainda dura. Condenado pela (falta de)
saúde a uma cama, Malone rememora e cria. Para estender sua vida, já que
não há outro remédio, Malone inventa motivos, ações, histórias,
tarefas, pois sim, ele tem seus pequenos passatempos. Passa tempo. Suas
lembranças podem ser imaginação e suas criações podem ser memórias.
Ele não o sabe. O leitor sabe muito menos. Saber é impossível. Saber
qualquer coisa é impossível. Malone apenas conta histórias a si mesmo
para se distrair ou se fazer acreditar.

Malone confunde. A si mesmo e ao leitor. Sua vida e as vidas que ele
desenrola são trágicas. Mas cotidianamente trágicas. Em “Malone
Morre” a tragédia se naturaliza, se torna comum. A incerteza é
intrínseca, a decadência é normalizada, bem como a banalidade e a
incomunicabilidade. Dizer sempre, ainda que não valha a pena dizer ou que
não adiante dizer.

Malone é a tragédia humana, a incerteza humana, a confusão humana, a
finitude humana, a decadência humana, a ação em vão humana, a
inutilidade humana, o absurdo humano, a humanidade humana. Somos todos,
como Malone, viventes e morrentes. Nos quedamos finitamente para o fim e no
trajeto temos nossos pequenos passatempos destinados a ocupar o vazio
enquanto durar.
---------------

"Não vou ficar me olhando morrer, isso estragaria tudo. Por acaso fiquei me olhando viver?"

"Tudo é divisível por si mesmo, eu suponho"

"É com o presente que eu tenho que acertar as contas se eu quero ser vingado"

"Nada é mais real que nada"

"Só vou voltar a esta carcaça para saber qual é a sua hora"

"O estado de coma é bom para os vivos"

"Viver. Falo sem saber o que quer dizer tal coisa. Tentei fazê-lo ignorando o que fazia"

"Talvez eu tenha vivido, sem saber"

"Ah, sim, tenho meus pequenos passatempos"

"Nascer, eis meu ideal no momento, isto é, viver o suficiente para saber o que é o gás carbônico livre, então agradecer e partir"

"Em volta é o fluxo dos fodidos da vida, comprando passagens, carregados de bagagens, eternamente ali onde não é preciso na hora em que não é preciso estar"

"Pra que serve isso ou aquilo, ou se sabe tudo ou não se sabe nada"

"(...) Viver é vagar sozinho no fundo de um instante sem limites onde a luz não varia e os destroços se parecem"

"Mas esta sensação de prolongamento é dura de resistir"

"Um mero fenômeno local é alguma coisa que eu nem notaria, tendo sido eu mesmo, na minha vida, apenas uma sucessão de fenômenos locais sem maiores consequências"

"O essencial se tornou tão mínimo que o fortuito parece sem limites"

"E se um dia eu me calar é porque não há mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito"

"Não vamos por o carro na frente dos bois, vamos morrer primeiro, depois vamos ver como é que fica"

"Com certeza, nunca nada me será dado terminar, a não ser o ato de respirar"

"Pois as pessoas não se contentam apenas com sofrer, elas precisam de calor e de frio"

"Não se deve pedir demais da vida"

"Como a vida embota o gosto pelo protesto"

"O fato é que eles não sabem, eu também não sei, mas eles pensam que sabem"

"Acho que estou feliz, ele se dizia, mas é menos divertido do que eu pensava"

BECKETT, Samuel. Malone Morre, 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

3 de maio de 2011

Um Conto sobre Piedade

O conto a seguir foi originalmente concluído em novembro de 2006 para ser publicado na Lista Tormenta. Excluí as referências ao cenário para prender mais esse pensamento.

-----------------------------
O inverno se aproxima do fim,mas não sem deixar conseqüências.

À tarde o homem volta para casa, uma cabana simples, mas aquecida e reconfortante. No fogão, a esposa prepara a refeição, os unguentos e infusões para o filho, numa cama improvisada junto à lareira. Já há vários dias a criança adoeceu e a enfermidade só faz piorar.

Começou como uma gripe, doença comum na estação, depois a tosse violenta, as manchas pelo corpo, o catarro com sangue e por último, a mucosa purulenta na boca e nos olhos. No momento o garoto dorme, é assim que passa a maior parte do dia, permanece pouquíssimo tempo acordado. Nos raros momentos em que se mantém desperto, sua mãe tenta fazê-lo comer, mas ele sempre recusa. A grave inflamação da laringe impede a alimentação e a fala. As dores e a atrofia muscular fazem com que a criança permaneça em paralisia quase completa. Às vezes, alivia-se de suas necessidades fisiológicas ali mesmo na cama. Entretanto, esforço algum é demais para sua dedicada mãe, que cuida com zelo de seu filho doente na esperança de que ele se recupere logo e volte a brincar com as outras crianças da vila.

- Continua a preparar essas receitas? – pergunta o homem esfregando as mãos para espantar o frio.

- Eles disseram que pode ajudar. – responde a mulher, se referindo aos curandeiros que vieram examinar o garoto.

- Eles nem sabem o que nosso filho tem! – fala com desprezo daqueles que, para ele, não passam de charlatões aproveitadores com menos conhecimento medicinal que sua avó.

Na cama o menino se contorce em convulsões de espirro e tosse. Quando a criança se acalma, a mulher tenta iniciar uma conversa sobre a doença.

- Acha que pode ser aquela doença que está atacando as terras depois do rio?

- Os curandeiros acham que não. - rebate o homem secamente.

A mulher se cala com a resposta. Logo após carrega uma xícara cheia de chá fumegante até o leito do filho. Espera ele parar de tossir e o desperta com afagos. Oferece o chá, mas ele nega. Força a bebida, que ele não toma, derramando parte do líquido nos cobertores. Com uma careta de dor, ele volta a dormir. Enquanto a mulher retorna ao fogão com o recipiente quase cheio, o homem retoma a conversa com ar preocupado.

- Hoje, quando saí pela manhã, vi um corvo pousado no nosso telhado.

- Oh deuses! Mas hoje é noite de lua em Foice! – apavora-se a mulher, deixando cair a xícara de chá que molha o chão de madeira.

Foice é a fase lunar em que a lua, por cinco dias, vai diariamente diminuindo, formando um “C”, até ficar em completa treva. A foice é também o símbolo sagrado do deus da morte.

- Isso mesmo. E você sabe o que isso quer dizer. - constata o homem tristemente.

O povo local é extremamente supersticioso. Seu cotidiano é repleto de augúrios, rituais para trazer sorte e afastar o azar, ou mesmo atos que devem ser evitados, pois são de mau agouro. Entre as diversas crendices, uma delas diz que quando um corvo pousa no telhado de uma casa em dia de lua em Foice, significa que um dos moradores irá falecer em breve.

- Não pode ser! Por que nosso filho?! Tão jovem. – a mulher prossegue o lamento num desespero cada vez maior. – Precisamos de um sacerdote! Temos que achar um! Nosso filho precisa da bênção de cura dos deuses! – lágrimas descem pela face, ela sabe que é quase impossível encontrar um clérigo num local ermo e afastado como aquele em que moram.

- Eu encontrei com um clérigo hoje. – sussurra o homem sob os gritos desesperados da esposa.

- O quê? – pergunta ela repentinamente suave com lágrimas no rosto ao ouvir o marido.

- Encontrei com um clérigo. – repete sem alegria.

- Encontrou? Que sorte! Você falou do nosso filho, não falou?

O homem fez que sim.

- Ele pode ajudar? – pergunta a mulher ansiosa.

O homem repete o gesto com a cabeça.

- Ele virá aqui hoje? – prossegue interrogando.

Ao sinal afirmativo do marido, a mulher se alegra. Espera em silêncio ao lado do filho por alguns instantes, mas a ansiedade supera a paciência e ela volta para seus afazeres domésticos a fim de encontrar uma distração. Porém o homem não esboça felicidade alguma, apenas permanece sentado na poltrona com ar pensativo. Na cama próxima à lareira, o menino tosse como se os pulmões fossem saltar pela boca. Após algumas horas, batidas na porta.

- Pode entrar! – autoriza o homem em voz alta, levantando-se da poltrona onde aguardava o visitante.

A porta se abre. De fora entra um homem com manto e capuz brancos. Sobre a roupa do desconhecido, pequenos flocos de neve quase imperceptíveis. Na mão esquerda, estendida ao longo do corpo, segura uma pequena foice de lâmina prateada. Pendurado no pescoço, como é costume para trazer sorte, um amuleto em forma de ferradura. Apesar de o amuleto lembrar também uma foice sem cabo. O estranho fecha a porta, barrando o intenso frio de fora, e se detém a olhar o dono da casa fixamente. O seu rosto estampa plena compaixão. O pai da criança aponta em direção ao filho e o visitante se dirige até o menino doente, como combinaram algumas horas atrás, para que a mulher não veja e não tente impedir o sacerdote.

De outro cômodo, a mulher surge e pergunta:

- Temos visita? – sem receber resposta, ela insiste – É o sacerdote de quem você falou?

O homem confirma com a cabeça.

Secando as mãos no avental encardido, ela começa o trajeto até onde está o filho. Quando passa ao lado do marido, ele a segura pelo braço, a puxa para si e lhe dá um abraço apertado. Sem entender, ela retribui o gesto, mas observa atentamente o sacerdote e o filho. A criança tosse violentamente, tem manchas negras no pescoço e em partes do rosto. Muco escorre do nariz e uma substância amarela e viscosa preenche o canto dos olhos e da boca. Enquanto o peito arfa e chia como uma fera selvagem lutando pela liberdade.

O sacerdote se aproxima do enfermo e senta na cama. Ergue a foice e murmura brevemente. Depois toca a lâmina de leve na testa do garoto e na sua própria.

- O que está acontecendo? O que ele vai fazer?! – questiona a mãe assustada envolta nos braços do marido.

- O Destino já rolou seus dados. – é a triste e resignada resposta do marido.

Um golpe certeiro.

- NÃÃÃOO!

O sacerdote corta a garganta do menino de um lado a outro do pescoço. O sangue jorra e corre quente e escarlate pela cama, pingando no chão. Sobre o corpo agonizante, o sacerdote recita uma oração:

- Piedosa Morte! Pelo sangue aqui vertido, eu o suplico: abençoa e conduza esta alma até os Planos Superiores, para que daqui em diante, ela permaneça em eterna felicidade.

O homem continua a segurar a esposa firmemente, que se debate com furor. “Mais tarde ela vai entender” pensa, “a dor do nosso filho terminou e ele ficará melhor agora”. A doença da criança, além de torturar-lhe corpo, trazia sofrimento aos pais, aos vizinhos e às demais crianças das redondezas. Ainda assim, o homem chora silenciosamente a perda do filho amado.

- Não! Meu filho! Você matou ele! Assassino! – a mulher chora copiosamente. Grita a plenos pulmões em desespero e revolta, como só uma mãe pode lamentar a morte do filho.

E seu filho agora jaz ali. Diante de seus olhos, sob sua observação impotente. Seu filho, seu único filho, morto.