5 de maio de 2011

Malone Morre

Malone vive. Mas Malone é um ser morrente. Velho, desgastado, destruído,
moribundo, estende sua vida por instantes mais em uma cama de onde não
consegue sair. Sua solidão é completa. Completa porque é total e
completa porque nada lhe falta. Pois Malone ainda tem vida. A vida que se
lhe esvai e que se lhe prolonga. Sim, prolonga, e é só. Só. Prolonga e
se alonga. Sua vida dura. É dura e ainda dura. Condenado pela (falta de)
saúde a uma cama, Malone rememora e cria. Para estender sua vida, já que
não há outro remédio, Malone inventa motivos, ações, histórias,
tarefas, pois sim, ele tem seus pequenos passatempos. Passa tempo. Suas
lembranças podem ser imaginação e suas criações podem ser memórias.
Ele não o sabe. O leitor sabe muito menos. Saber é impossível. Saber
qualquer coisa é impossível. Malone apenas conta histórias a si mesmo
para se distrair ou se fazer acreditar.

Malone confunde. A si mesmo e ao leitor. Sua vida e as vidas que ele
desenrola são trágicas. Mas cotidianamente trágicas. Em “Malone
Morre” a tragédia se naturaliza, se torna comum. A incerteza é
intrínseca, a decadência é normalizada, bem como a banalidade e a
incomunicabilidade. Dizer sempre, ainda que não valha a pena dizer ou que
não adiante dizer.

Malone é a tragédia humana, a incerteza humana, a confusão humana, a
finitude humana, a decadência humana, a ação em vão humana, a
inutilidade humana, o absurdo humano, a humanidade humana. Somos todos,
como Malone, viventes e morrentes. Nos quedamos finitamente para o fim e no
trajeto temos nossos pequenos passatempos destinados a ocupar o vazio
enquanto durar.
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"Não vou ficar me olhando morrer, isso estragaria tudo. Por acaso fiquei me olhando viver?"

"Tudo é divisível por si mesmo, eu suponho"

"É com o presente que eu tenho que acertar as contas se eu quero ser vingado"

"Nada é mais real que nada"

"Só vou voltar a esta carcaça para saber qual é a sua hora"

"O estado de coma é bom para os vivos"

"Viver. Falo sem saber o que quer dizer tal coisa. Tentei fazê-lo ignorando o que fazia"

"Talvez eu tenha vivido, sem saber"

"Ah, sim, tenho meus pequenos passatempos"

"Nascer, eis meu ideal no momento, isto é, viver o suficiente para saber o que é o gás carbônico livre, então agradecer e partir"

"Em volta é o fluxo dos fodidos da vida, comprando passagens, carregados de bagagens, eternamente ali onde não é preciso na hora em que não é preciso estar"

"Pra que serve isso ou aquilo, ou se sabe tudo ou não se sabe nada"

"(...) Viver é vagar sozinho no fundo de um instante sem limites onde a luz não varia e os destroços se parecem"

"Mas esta sensação de prolongamento é dura de resistir"

"Um mero fenômeno local é alguma coisa que eu nem notaria, tendo sido eu mesmo, na minha vida, apenas uma sucessão de fenômenos locais sem maiores consequências"

"O essencial se tornou tão mínimo que o fortuito parece sem limites"

"E se um dia eu me calar é porque não há mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito"

"Não vamos por o carro na frente dos bois, vamos morrer primeiro, depois vamos ver como é que fica"

"Com certeza, nunca nada me será dado terminar, a não ser o ato de respirar"

"Pois as pessoas não se contentam apenas com sofrer, elas precisam de calor e de frio"

"Não se deve pedir demais da vida"

"Como a vida embota o gosto pelo protesto"

"O fato é que eles não sabem, eu também não sei, mas eles pensam que sabem"

"Acho que estou feliz, ele se dizia, mas é menos divertido do que eu pensava"

BECKETT, Samuel. Malone Morre, 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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