3 de maio de 2011

Um Conto sobre Piedade

O conto a seguir foi originalmente concluído em novembro de 2006 para ser publicado na Lista Tormenta. Excluí as referências ao cenário para prender mais esse pensamento.

-----------------------------
O inverno se aproxima do fim,mas não sem deixar conseqüências.

À tarde o homem volta para casa, uma cabana simples, mas aquecida e reconfortante. No fogão, a esposa prepara a refeição, os unguentos e infusões para o filho, numa cama improvisada junto à lareira. Já há vários dias a criança adoeceu e a enfermidade só faz piorar.

Começou como uma gripe, doença comum na estação, depois a tosse violenta, as manchas pelo corpo, o catarro com sangue e por último, a mucosa purulenta na boca e nos olhos. No momento o garoto dorme, é assim que passa a maior parte do dia, permanece pouquíssimo tempo acordado. Nos raros momentos em que se mantém desperto, sua mãe tenta fazê-lo comer, mas ele sempre recusa. A grave inflamação da laringe impede a alimentação e a fala. As dores e a atrofia muscular fazem com que a criança permaneça em paralisia quase completa. Às vezes, alivia-se de suas necessidades fisiológicas ali mesmo na cama. Entretanto, esforço algum é demais para sua dedicada mãe, que cuida com zelo de seu filho doente na esperança de que ele se recupere logo e volte a brincar com as outras crianças da vila.

- Continua a preparar essas receitas? – pergunta o homem esfregando as mãos para espantar o frio.

- Eles disseram que pode ajudar. – responde a mulher, se referindo aos curandeiros que vieram examinar o garoto.

- Eles nem sabem o que nosso filho tem! – fala com desprezo daqueles que, para ele, não passam de charlatões aproveitadores com menos conhecimento medicinal que sua avó.

Na cama o menino se contorce em convulsões de espirro e tosse. Quando a criança se acalma, a mulher tenta iniciar uma conversa sobre a doença.

- Acha que pode ser aquela doença que está atacando as terras depois do rio?

- Os curandeiros acham que não. - rebate o homem secamente.

A mulher se cala com a resposta. Logo após carrega uma xícara cheia de chá fumegante até o leito do filho. Espera ele parar de tossir e o desperta com afagos. Oferece o chá, mas ele nega. Força a bebida, que ele não toma, derramando parte do líquido nos cobertores. Com uma careta de dor, ele volta a dormir. Enquanto a mulher retorna ao fogão com o recipiente quase cheio, o homem retoma a conversa com ar preocupado.

- Hoje, quando saí pela manhã, vi um corvo pousado no nosso telhado.

- Oh deuses! Mas hoje é noite de lua em Foice! – apavora-se a mulher, deixando cair a xícara de chá que molha o chão de madeira.

Foice é a fase lunar em que a lua, por cinco dias, vai diariamente diminuindo, formando um “C”, até ficar em completa treva. A foice é também o símbolo sagrado do deus da morte.

- Isso mesmo. E você sabe o que isso quer dizer. - constata o homem tristemente.

O povo local é extremamente supersticioso. Seu cotidiano é repleto de augúrios, rituais para trazer sorte e afastar o azar, ou mesmo atos que devem ser evitados, pois são de mau agouro. Entre as diversas crendices, uma delas diz que quando um corvo pousa no telhado de uma casa em dia de lua em Foice, significa que um dos moradores irá falecer em breve.

- Não pode ser! Por que nosso filho?! Tão jovem. – a mulher prossegue o lamento num desespero cada vez maior. – Precisamos de um sacerdote! Temos que achar um! Nosso filho precisa da bênção de cura dos deuses! – lágrimas descem pela face, ela sabe que é quase impossível encontrar um clérigo num local ermo e afastado como aquele em que moram.

- Eu encontrei com um clérigo hoje. – sussurra o homem sob os gritos desesperados da esposa.

- O quê? – pergunta ela repentinamente suave com lágrimas no rosto ao ouvir o marido.

- Encontrei com um clérigo. – repete sem alegria.

- Encontrou? Que sorte! Você falou do nosso filho, não falou?

O homem fez que sim.

- Ele pode ajudar? – pergunta a mulher ansiosa.

O homem repete o gesto com a cabeça.

- Ele virá aqui hoje? – prossegue interrogando.

Ao sinal afirmativo do marido, a mulher se alegra. Espera em silêncio ao lado do filho por alguns instantes, mas a ansiedade supera a paciência e ela volta para seus afazeres domésticos a fim de encontrar uma distração. Porém o homem não esboça felicidade alguma, apenas permanece sentado na poltrona com ar pensativo. Na cama próxima à lareira, o menino tosse como se os pulmões fossem saltar pela boca. Após algumas horas, batidas na porta.

- Pode entrar! – autoriza o homem em voz alta, levantando-se da poltrona onde aguardava o visitante.

A porta se abre. De fora entra um homem com manto e capuz brancos. Sobre a roupa do desconhecido, pequenos flocos de neve quase imperceptíveis. Na mão esquerda, estendida ao longo do corpo, segura uma pequena foice de lâmina prateada. Pendurado no pescoço, como é costume para trazer sorte, um amuleto em forma de ferradura. Apesar de o amuleto lembrar também uma foice sem cabo. O estranho fecha a porta, barrando o intenso frio de fora, e se detém a olhar o dono da casa fixamente. O seu rosto estampa plena compaixão. O pai da criança aponta em direção ao filho e o visitante se dirige até o menino doente, como combinaram algumas horas atrás, para que a mulher não veja e não tente impedir o sacerdote.

De outro cômodo, a mulher surge e pergunta:

- Temos visita? – sem receber resposta, ela insiste – É o sacerdote de quem você falou?

O homem confirma com a cabeça.

Secando as mãos no avental encardido, ela começa o trajeto até onde está o filho. Quando passa ao lado do marido, ele a segura pelo braço, a puxa para si e lhe dá um abraço apertado. Sem entender, ela retribui o gesto, mas observa atentamente o sacerdote e o filho. A criança tosse violentamente, tem manchas negras no pescoço e em partes do rosto. Muco escorre do nariz e uma substância amarela e viscosa preenche o canto dos olhos e da boca. Enquanto o peito arfa e chia como uma fera selvagem lutando pela liberdade.

O sacerdote se aproxima do enfermo e senta na cama. Ergue a foice e murmura brevemente. Depois toca a lâmina de leve na testa do garoto e na sua própria.

- O que está acontecendo? O que ele vai fazer?! – questiona a mãe assustada envolta nos braços do marido.

- O Destino já rolou seus dados. – é a triste e resignada resposta do marido.

Um golpe certeiro.

- NÃÃÃOO!

O sacerdote corta a garganta do menino de um lado a outro do pescoço. O sangue jorra e corre quente e escarlate pela cama, pingando no chão. Sobre o corpo agonizante, o sacerdote recita uma oração:

- Piedosa Morte! Pelo sangue aqui vertido, eu o suplico: abençoa e conduza esta alma até os Planos Superiores, para que daqui em diante, ela permaneça em eterna felicidade.

O homem continua a segurar a esposa firmemente, que se debate com furor. “Mais tarde ela vai entender” pensa, “a dor do nosso filho terminou e ele ficará melhor agora”. A doença da criança, além de torturar-lhe corpo, trazia sofrimento aos pais, aos vizinhos e às demais crianças das redondezas. Ainda assim, o homem chora silenciosamente a perda do filho amado.

- Não! Meu filho! Você matou ele! Assassino! – a mulher chora copiosamente. Grita a plenos pulmões em desespero e revolta, como só uma mãe pode lamentar a morte do filho.

E seu filho agora jaz ali. Diante de seus olhos, sob sua observação impotente. Seu filho, seu único filho, morto.

Nenhum comentário: