23 de outubro de 2010

Navio Moderno e Naufrágio Pós-Moderno

Seguros em navio bem construído, sólido, único, iluminado e organizado partiam rumo ao horizonte, até onde a vista alcançava, para a Ilha Prometida, Atlântida, a Nova República. Onde as leis fossem justas, onde os Homens fossem fraternos, livres e iguais, onde a mentira não escondesse a verdade, onde a civilização reinasse, à frente, sempre à frente. Para a Utopia.

Num navio sem remos nem velas, ondulando ao sabor do acaso da maré. Com cálculos precisos ditando o caminho, verdades obtidas através de perfeitos e complicados instrumentos técnicos. De observação celeste, de análise das ondas, de reparação do madeirame, de governança dos tripulantes e passageiros, situação sob controle.

Abatidos pela esperança, aguardavam a chegada sempre adiada. E animavam-se diante dos sinais encontradas pelos esclarecidos: uma nova corrente marinha que poderia empurrar até a ilha; uma nova espécie de peixe que não haviam visto antes; uma nova constelação surgida no céu sugeria que já tinham navegado o bastante; um novo sopro de ar; uma nova posição do sol; uma nova estação. Novidades, precisavam de novidades, mais novidades, sempre novidades, para que a espera fosse menos dolorosa e vislumbrassem ainda a possibilidade da chegada.

Mas a espera era sempre demasiada. Sentiam saudade do tempo em que seus pés tocavam a terra e a areia passava entre seus dedos. De caminhar até onde quisessem. No navio estavam presos, cada um em sua cela. Quando no tombadilho, o choque entre eles era sempre inevitável, pois gente demais ocupava espaço de menos. E criavam-se grupos, guerras, ameaças, desconfianças, e nova reclusão em suas celas. A interferência dos comandantes tinha que ser imediata, forte e preventiva, ou o controle ameaçava romper e as coisas poderiam acabar realmente mal. A ameaça de um fratricídio era constante.

Em seus íntimos, todos morriam de tédio, angústia, ansiedade e frustração. E nem a segurança causada pela solidez do barco sempre avançando era capaz de preencher o vazio que sentiam e não suportavam. Os marujos apodreciam de escorbuto e as donzelas e os estóicos mergulhavam para sempre no negror do mar.

Deixaram de querer a Utopia da Esperança. Começaram a desejar o que não tinham: liberdade. Liberdade para sair se quisessem, liberdade de não aderir, liberdade da responsabilidade sufocante, liberdade para gastar a vida onde quisessem, liberdade de ter os gostos, e roupas, e desejos que mais lhe atraíssem. Não uma liberdade baseada na organização de todos, compartilhada, mas uma liberdade da tolerância, de aceitação, não agressiva e não controladora. Mais liberdade, ao preço que fosse.

E foi aí que a solidez da nova Arca da Humanidade falhou. O improvável e irracional aconteceram: o navio inteiro submergiu, levando tudo o que representava. E quando as águas o começaram a sugar, subiam à superfície as contrapartes do navio. E as pessoas. Acostumadas a viver em grupos de cooperação, estranhou-se suas atitudes, a morte estava bem próxima e provável: era cada um por si!

Mastros, madeiras, caixas, camas, pranchas e destroços em geral estavam espalhados a quilômetros de distância depois que o navio havia se espatifado e se desintegrado em pequenos pedaços saudosos. Em cada um destes destroços alguém se agarrava avidamente protegendo a sua própria vida, numa atitude pouco condizente com o tédio e o desânimo que demonstravam no navio. Sob o perigo iminente da morte, preocupavam-se em viver de novo, e dispostos a aproveitar o mais que pudessem dessa vez, já que não poderiam prever de modo algum quando as águas tragar-lhes-iam outra vez.

Desesperados remavam, nadavam e davam braçadas heróicas. E desesperar é ainda não ter mais esperanças. Suas únicas vidas eram destroços pálidos do que havia sido uma sólida nau tempos atrás. E se agarravam a eles como nunca. Pequenos prazeres podiam ser comprados, como um destroço maior, ou mais arredondado, ou mais confortável, ou melhor pintado e mais bonito. Remos, espelhos, chapéus, dados e moedas estavam entre os objetos mais populares que resgatavam do naufrágio. Nada de realmente útil, só algo de que desejavam para passar seus últimos instantes de vida da forma mais agradável que conseguissem. Mas afinal, numa situação como aquela? O que poderia ser realmente útil? Que não um enfeite que a tornasse mais bela, um jogo que matasse o tempo, uma ferramenta ou um objeto que os fizessem lembrar de outros tempos em que sua memória rasa os fazia supor que haviam sido melhores.

Sem chão sob os pés sentiam-se perdidos. Nada mais os guiava a não ser o próprio íntimo. Quando solitários, partilhavam opiniões, não espaços. Impotentes para mudar a situação diante das circunstâncias resignavam-se a preocupar-se somente consigo mesmos, que era até onde tinham poder e liberdade de ir. Haviam perdido a solidez do navio e dos pés no chão, mas tinham ganho a liberdade e o desejo. Tornaram-se novamente selvagens inocentes. Se estavam mais ou menos felizes não era a questão. Eram situações diferentes, e isto é tudo.